sábado, 31 de dezembro de 2011

2011


    Na fila para pagar a consumação na saída da comemoração de fim de ano do trabalho, vi uns maços de cigarro à venda e comentei com os meus botões, após 3 caipivodkas, que dava vontade de comprar um... Daí o sujeito que estava na minha frente disse que tinha parado de fumar há 20 e não sei quantos anos e que não tinha mais vontade de fumar. Procurando me justificar, expliquei que só parei de fumar em janeiro. Ou seja, outro dia mesmo... Só no dia seguinte, me dei conta de que já faz quase um ano. Não sei o dia exato, mas sei que foi em janeiro.
    Alguns dias depois, estava contando para uma conhecida que havia me separado. Ela perguntou: Quando? E eu disse que tinha sido outro dia mesmo. Depois, para ser mais exata, informei que foi em agosto. Ah!, então já faz quase 4 meses, ela comentou. Pois é. Também não sei o dia exato, mas sei que foi em agosto. Realmente, foi há mais de 4 meses.
    Quando estava me decidindo a parar de fumar, pensei um monte de bobagens. Dentre elas, que eu poderia aguentar qualquer coisa nesta vida, desde que pudesse fumar. Ou ainda, que, privada do cigarro, talvez nunca mais fosse feliz.
    Quando o meu casamento acabou, achei que minha vida ia pelo mesmo caminho. Não conseguia mais ver qualquer graça em viver sozinha, sem um companheiro. Tive muito medo da solidão. Quase morri de ciúmes. Me senti um lixo. Fiquei sem saber quem eu era. Sofri como um cão (não entendo a razão dessa expressão... a cadela aqui de casa leva uma vida de princesa... embora também tenha sofrido muito com a separação...). Depois, com a ajuda da família, dos amigos e de um tanto de terapia, percebi que, ao longo dos anos, tinha me esquecido de mim.
    Nada drástico. Mantive amigos, trabalho e atividades exclusivamente minhas. Mantive até meu nome de solteira (sábia decisão!). Escrevi um livro (no que, aliás, fui muito incentivada pelo meu ex-marido)! Mas, o centro da minha vida não era mais eu. A minha existência começou a girar em torno das necessidades e possibilidades de meu marido e meu filho. Ok, é normal, acontece. Mas é perverso. Porque ninguém te pede nada, mas é o que se espera de você. E, de um dia para o outro, você se transforma naquela criatura que cobra por algo que não lhe foi pedido. Em síntese, uma chata.
    Enfim, o fato é que percebi que posso sobreviver perfeitamente sem marido. E sem cigarro. Aliás, cá entre nós, acho que fui uma heroína em não voltar a fumar na hora da crise...
    Por outro lado, me descobri mais fraca do que jamais poderia imaginar. Não esperava sofrer tanto, nem temer tanto. Lembro de entrar em pânico, em plena rua Jardim Botânico, numa quarta-feira à noite, após visitar um apartamento para comprar. De repente, percebi que, pela primeira vez na minha vida, ia decidir sozinha a respeito da minha moradia e de um investimento decisivo. E se eu errasse? Andei até minha casa chorando.
    Aliás, como chorei nos primeiros meses! Chorava em casa, chorava caminhando na Lagoa, chorava no trabalho. A qualquer momento do dia ou da noite, eu podia cair em prantos. Podia estar no meio de uma frase de um texto do trabalho e, do nada, lembrava de alguma coisa que fazia as lágrimas brotarem. (É bem verdade que sempre fui chorona... Quando criança, parece que meu padrinho certa vez observou que as minhas lágrimas não escorriam, mas saltavam, esguichavam dos meus olhos.) Pior ainda quando alguém telefonava. Podia ser o ex, minha mãe, algum amigo ou parente querendo notícias. O pessoal da recepção do tribunal (onde vamos para falar ao telefone sem atrapalhar os colegas) deve achar que eu sou completamente desequilibrada...
    Mas, talvez, justamente por ter sofrido de forma tão intensa, quando digeri tudo, fiquei ótima. (Aqui tenho que confessar que, durante inusitada terapia pós-separação à qual meu ex e eu nos submetemos, o psiquiatra me receitou um antidepressivozinho que foi bastante útil para me dar uma mãozinha pra sair do buraco...). Não quer dizer que não tenha mais momentos de tristeza e melancolia, mas, na maior parte do tempo, estou adorando a minha nova vida. Estou amando a idéia de ter uma casa só minha (e do meu filho), onde eu vou decidir tudo.
    O medo do futuro e da solidão evaporou quando percebi que pedi socorro e fui socorrida. Tenho família, excelentes amigos e um maravilhoso ex-marido. Tenho casa, trabalho e saúde. 2011 foi um ano de mudanças radicais: larguei o cigarro, comecei um novo trabalho, me separei, emagreci 5 quilos sem fazer esforço, fiquei loira, reencontrei amigos, estou fazendo ioga e descobri que não preciso de muita coisa pra ser feliz. O futuro agora promete grandes aventuras e a solidão serve para matar as saudades de mim.

 
P.S. – Estava achando este texto muito piegas, mas, a minha grande amiga Pollyanna falou que era pra deixar de frescura e publicar assim mesmo...

 

domingo, 4 de dezembro de 2011

O CARRASCO - 20

        Aquele choro a perseguiria por muito tempo, penetrando em seus ouvidos como uma acusação. Luísa não conseguiu amamentar o filho: nem no dia do nascimento, nem nunca. E ele chorava, chorava e chorava, de forma tão persistente, que o único jeito de evitar aquele som enlouquecedor, era afastar-se dele. Foi o que fez.

 
        Ninguém a compreendia. Ninguém sabia o susto que tinha passado ao deparar-se pela primeira vez com aquele bebê. Naturalmente, pensavam que devia estar preparada. Qual seria o sentido de uma gestação de nove meses, se não preparar a mãe para a chegada do neném? Luísa não tinha a menor idéia, só sabia que, para ela, nove meses não tinham sido suficientes.

 
        Durante a gravidez, até que as coisas foram bem. A situação tinha um lado constrangedor, sentia que as pessoas a olhavam como se fosse uma espécie de aberração. Mas, ao mesmo tempo, ganhara um certo status de adulta. Seus amigos, embora a maior parte achasse uma loucura ela ter um filho, tratavam-na com respeito e consideração especiais. As meninas perguntavam sobre todos os detalhes da gravidez, em uma mistura de admiração, inveja e pena. Era gostoso desfilar a barriga imensa pelas ruas, aceitar os assentos que lhe eram oferecidos por rapazes gentis nos ônibus lotados, ser mimada pelo pai, que lhe trazia sempre uma guloseima, na volta do trabalho.

 
        No centro de tantas atenções, até esquecia a estranha sensação de ter um ser independente crescendo, à sua revelia, dentro de seu corpo. Até mesmo na hora dos exames, nada parecia muito real. A ultrassonografia de última geração mostrava imagens do embrião que revelavam tratar-se de um menino, para alegria de seu pai. Mas, apesar das imagens bastante nítidas de seu filho, no fundo, ela não acreditava muito que aquele animalzinho que aparecia na tela do computador fosse realmente uma criança crescendo em seu ventre. Nem mesmo as roupinhas que comprava ou ganhava da família e dos amigos tornavam mais concreta a iminente chegada de seu filho.

 
        O nascimento de Toninho foi um choque. Após horas de dor excruciante, aquele bebê vermelho, com cara de joelho, foi puxado de dentro dela, comprovando que tinha estado lá o tempo todo. E, ainda por cima, chorava, enquanto todos a olhavam, como se fosse ela a responsável pelo seu choro, pelo seu sofrimento, e não o contrário. A enfermeira, o médico, sua família, todos queriam que amamentasse o bebê. Sequer consideravam a hipótese de que ela não quisesse fazê-lo. E não queria. Estava cansada e assustada.

 
        De uma hora para a outra, parecia que ninguém se preocupava mais com o seu bem estar, que vinha sendo uma prioridade absoluta nos últimos meses. Agora só se importavam com o bebê. Ela era apenas a mãe de Toninho e, como tal, deveria sacrificar-se por ele. A pressão foi tanta, que acabou se resignando e tentou amamentá-lo. Procurou esquecer a vergonha de expor o seio nu diante daquela platéia ávida, encarando o ato como uma demonstração de que era uma mulher adulta e completa. Mas, quando aquelas mãozinhas minúsculas tocaram no seu peito e aquela boquinha sugou o bico intumescido com uma força tirada sabe-se lá de onde, sentiu dor, sentiu vergonha, sentiu até nojo. Enquanto isso, todos admiravam a cena, encantados com a voracidade de Toninho. Ela sofrendo, e a platéia comentando que ela devia ter bastante leite, o que seria ótimo para o bebê. Não queria participar daquilo. Olhou pela janela. O dia estava lindo. Há tempos não via um céu tão azul. Começou a chorar.

 

 

 

terça-feira, 15 de novembro de 2011

O CARRASCO 19


         Luisa entrou em trabalho de parto numa sexta-feira à tarde. Não dava para negar que, embora aquela criança estivesse vindo ao mundo cerca de uma década antes do que seria recomendável, ao menos havia escolhido bem o dia da semana e o horário, de forma a causar o mínimo de transtornos à rotina da família. Antonio estava em casa com as filhas e, após cronometrar por algumas horas a evolução das contrações, decidiu que era hora de ir para a maternidade. Avisou Vera, que estava no escritório, para que fosse ao seu encontro.

 
        Quando Vera chegou à maternidade, Luisa já estava sendo levada para a sala de parto. Não parou para pensar. Apenas assumiu seu posto ao lado da filha, que precisava de seu apoio. Antonio ficou esperando do lado de fora, pois "não tinha estômago para essas coisas". No fundo, ainda era o mesmo, pensou. Ela também não tinha estômago para aquilo, jamais imaginou que precisaria. Suas filhas nasceram de cesariana, porque o médico achava mais prático e menos sofrido, e ela ficou feliz em concordar. Agora via Luisa chorando, berrando e suando, agarrada à sua mão, e sentia o coração apertado de impotência e culpa.

 
        Quando, finalmente, o médico tirou o bebê, caiu em prantos. Sequer conseguiu responder quando o pediatra lhe perguntou se queria cortar o cordão umbilical. Claro que não! Ela não chorava em genuína manifestação de êxtase diante do milagre da vida. Sua vontade era enfiar aquela criança de volta no ventre da filha e deixá-la lá por alguns anos. Mas, não era hora para devaneios. Aquele bebê vermelho, quase roxo, pelo qual sentia um afeto melancólico, já chegava ao mundo carregando um fardo de culpa grande demais para qualquer adulto. Faria de tudo para aliviá-lo e trazer para si toda aquela culpa, que, no fundo, era somente dela. Olhou para a filha, que agora ria, um riso um pouco nervoso, enquanto a enfermeira se aproximava com o bebê enrolado em uma manta.

 
        - Pode segurar, mamãe, é um menino lindo e forte - disse a enfermeira, docemente, para Luísa.

 
        Sem fazer qualquer menção de pegar o embrulho que a enfermeira lhe oferecia, Luisa lançou um olhar suplicante em direção à mãe.

 
        - Acho que não tenho forças - disse, constrangida, para a enfermeira - Leva ele pra vovó.

 
        Vera acudiu prontamente, quase correndo para pegar o bebê dos braços da enfermeira, que sequer tentava disfarçar a expressão de reprovação. Precisava evitar que o bebê sentisse a rejeição que emanava de Luísa. Ele não merecia sofrer, sua filha tampouco. Tomou o menino das mãos assépticas da enfermeira e tentou transmitir-lhe todo o calor maternal que tinha desenvolvido ao longo das décadas. A bem da verdade, a criaturinha não parecia sentir muita diferença entre a sustentação funcional da enfermeira e o colo caloroso da avó. Por algum tempo, permaneceu quieta, alienada, como se ainda estivesse no útero materno.

 
        Enquanto isso, o médico explicava a Luísa que ela deveria amamentá-lo o quanto antes. Que seria bom para o bebê e também para ela, pois as contrações provocadas pela sucção da criança, ajudariam na sua recuperação. Diante da resistência de Luísa, que chegou a chorar, dizendo que estava cansada, que não tinha forças para segurar o filho, Toninho foi mandado para o berçário e Luisa para o quarto, sempre acompanhada da mãe.

 
        No caminho, encontraram Antonio, que, após ver o neto, que acabara de passar, era o retrato da própria felicidade:

 
        - Parabéns, filhinha, parabéns! – emocionava-se, parecendo não perceber que a filha, deitada na maca, tinha o olhar inerte, perdido sob um rio de lágrimas que escorriam serena e incessantemente pelo seu rosto.

 
        Enquanto a enfermeira e Vera ajudavam Luisa a acomodar-se na cama, Antônio começou a telefonar para amigos e parentes. Repetia as mesmas informações a cada nova ligação, com o mesmo entusiasmo. A cada interlocutor, renovava-se seu orgulho. É um menino! Três quilos! Parto normal! Antonio, igual ao avô! Luísa está ótima!

 
        Sentada ao lado da filha, do outro lado do quarto, Vera sentia gratidão pela alegaria do marido, por mais despropositada que fosse. Afinal, se alguém estava tão radiante com o nascimento daquela criança, as coisas não deviam ser tão sombrias quanto lhe pareciam. A própria Luísa parecia estar se animando com o falatório do pai. Quando Antônio terminou os telefonemas, até concordou em mandar trazer Toninho e tentar amamentá-lo.

 
        Antes do bebê, todavia, chegaram Isabel e D. Cristina, mãe de Vera. A menina trazia flores e bombons para a irmã, obviamente por instrução da avó, que tentava agir como se achasse normal uma adolescente ter um filho.

 
        - Cadê o meu sobrinho? - perguntou Isabel, enquanto abria a caixa de bombons que tinha trazido para Luisa e, antes mesmo de oferecer a qualquer dos presentes, enfiava o primeiro na boca.

 
        - Minha filha, pelo menos oferece pros outros... - repreendeu Vera, por puro hábito, já que a educação de Isabel, naquele momento, era a última de suas preocupações, emendando – A enfermeira já foi buscar o Toninho.

 
        - É uma bela homenagem ao seu pai, dar o nome dele ao seu filho - afirmou D. Cristina para Luísa e, virando-se para Antônio, concluiu, com um quase imperceptível toque de ironia - Você deve estar muito orgulhoso!

 
        Sem perceber qualquer maldade no comentário da sogra, Antonio respondeu, entusiasmado - É, Cristina, realmente é uma honra, ainda mais em se tratando de um meninão forte e saudável como o meu neto, você precisa vê-lo... Ó, falando nele, olha quem vem aí...

 
        A enfermeira entrou carregando Toninho e foi imediatamente cercada por D.Cristina, Luísa e Antônio. A bisavó se aprumou, na clara intenção de acolher o bebê no seu colo, mas Antônio foi mais rápido. Pegou o neto um tanto desajeitadamente, o que fez com que se pusesse a chorar.

 
        - Ele está com fome – explicou, como se já soubesse adivinhar as necessidades do neto - Agora ele vai mamar. – afirmou, possuído daquela recente autoridade, à qual Vera ainda não se acostumara.

 
        Levou o bebê até a cama de Luisa que, dessa vez, não teve escapatória. Tomou Toninho nos braços e, meio sem jeito, tentou levá-lo ao peito. Vera se aproximou para ajudar. A criança não parava de chorar.

 


 


 

terça-feira, 8 de novembro de 2011

AGENTE TEM TUDO HAVER


Muita gente desconfia dos relacionamentos surgidos através da internet. Afinal, a rede está cheia de tarados e estelionatários escondidos atrás de seus computadores, prontos para envolver e atacar presas ingênuas e vulneráveis, especialmente crianças, adolescentes e mulheres carentes. Sem falar nas pessoas que se apresentam sob fotos falsas ou antigas, inventam profissões, escondem o verdadeiro estado civil, etc.
Em compensação, há outros aspectos muito mais dificeis de disfarçar online. O mais importante deles é o português... Afinal, num relacionamento ao vivo e a cores, é mais fácil não perceber, ignorar ou tentar acreditar que foi um lapso único, quando aquele deus grego solta um "pra mim fazer". Na rede, também fica muito mais evidente eventual incompatibilidade de gostos musicais, literários e até de senso de humor. Dificilmente aquela gata gostosérrima vai revelar que seu autor favorito é Paulo Coelho (do qual ela, na verdade, só leu um livro), na pista de dança de uma boate. Às vezes, pode demorar semanas até aquele sujeito tão gentil e educado, que abre a porta do carro e manda flores, revelar traços misóginos.
Mas, na internet, uma rápida análise de um perfil do facebook, por exemplo, já permite uma avaliação eliminatória rápida. Tá tudo lá: religião, citações e curtições. E, mais importante, a imagem que a pessoa faz de si mesma ou a que quer passar. Há quem não revele o rosto ou qualquer informação a não ser para os "amigos". Outros expõem detalhes constrangedores de sua intimidade ao público. E os personagens? Fotografias atléticas, de roupa de banho; ou misteriosas, de apenas um canto da boca. Citações orientais misturadas com auto-ajuda barata, filosofia alemã, música barroca e grifes francesas. Quem sou eu?, o perfil parece gritar. Isso tudo pode ser um belo balde d'água fria no começo de uma amizade virtual. Se rolar uma troca de mensagens, então, nem se fala... Não há ilusão ou tesão que resistam a um comentário como "agente tem tudo haver". Ainda mais quando vem de alguém de classe média alta, que estudou a vida toda em escola particular, de "nível superior", que faz piada com os erros de português do Lula. E, pior ainda, se aparecer, do nada, na tela do seu computador, num desses chats que você não sabe controlar.
Em compensação, quando as citações são interessantes, as piadas boas, os links musicais agradam e o português é correto, basta torcer pra que a foto e as informações sejam verdadeiras e marcar o encontro em um local público, avisando alguém conhecido, porque, sabe como é, tem uns tarados e estelionatários encantadores soltos por aí.
Um beijo no coração!

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

POLLYANNA, A FOFA


    Eu li Pollyanna quando tinha uns 12 anos. Não lembro de nada. Ou melhor, quase nada. Só lembro que Pollyanna vivia levando na cabeça e continuava achando tudo lindo. Naturalmente, o final devia demonstrar que valia a pena ser como a Pollyanna e ver sempre o lado positivo, mesmo das maiores desgraças. Pois eu não aprendi com Pollyanna.
    Aliás, não acredito em pessoas que vivem sempre sorrindo, perdoando, desapegadas e super alto-astral, aconteça o que acontecer. Não agüento gente que diz ter inveja "branca". Inveja é inveja: não tem cor (e nem deve ser politicamente correta essa distinção...). O máximo que posso admitir é a definição que o Zuenir Ventura deu no livro que escreveu para uma coleção sobre os pecados capitais. Inveja é quando você, não apenas quer o que outro tem, mas, quer que ele não tenha. Se você quer para si o que é do outro, é cobiça. E a tal da inveja "branca" seria apenas admiração. Tá bom... Tem um monte de santo por aí que só sente admiração. Cobiça? Nunca. Inveja? Jamais.
    Então tá. Esse povo superior também não guarda mágoas. Supera rejeição, deslealdade, traição, ofensas, sempre focando no aqui e agora. Nada de sentimentos mesquinhos, como raiva, rancor, desprezo, sede de vingança, etc. Não estou aqui defendendo que a gente deva ficar cultivando e alimentando ressentimentos. É claro que isso não faz bem. Mas, ignorar ou esconder, muitas vezes de si mesmo, que gostaria que o chefe grosseiro tomasse umas porradas ou fosse corneado pela esposa "Amélia"; que a mulherzinha infeliz que roubou seu namorado pegasse uma gonorréia ou perdesse todo o cabelo; ou até mesmo que o sujeito que te deu uma fechada no trânsito recebesse uma bela multa ou enfiasse o carro em um poste na próxima esquina, deve ser ainda pior. Afinal, quem disse que a gente tem que censurar o que sente? Por que todos têm que ser perfeitos? Eu até acredito que algumas poucas pessoas são realmente mais evoluídas e menos acometidas de sentimentos mesquinhos ou, por que não dizer, humanos... Mas, a maior parte, vive envergonhada, a fingir, até para si mesmo, uma nobreza de espírito que não se encontra amiúde.
    Pura culpa. Ou medo de rejeição. Há quem acredite que, desejando mal ao próximo, poderá mesmo atingi-lo e carregará a culpa pelo mal causado até o fim dos dias. Ou pior, há os que crêem no efeito ricochete. Tipo, eu desejo que você sofra e, por isso, eu acabo sofrendo mais. E há os que pensam que somente os perfeitos podem ser amados. Aí a necessidade de perfeição é ainda maior. Assim como é essencial não deixar transparecer qualquer defeito de caráter. E, quando falo defeito de caráter, não estou me referindo às grandes canalhices, mas aos deslizes a que estamos todos sujeitos. Um pouco de egoísmo aqui, uma certa vaidade acolá, um ocasional gostinho pela maledicência. Quem nunca fez uma fofoca, que atire a primeira pedra. E que tédio seria o mundo habitado somente de pessoas perfeitas... Aliás, pessoas perfeitas só existem na nossa fantasia, quando estamos cegos de paixão. Depois que passa a paixão, ou a gente ama o imperfeito, ou vive uma baita desilusão.
    Então, melhor botar pra fora. E, cá entre nós, não acredito que, com a força do meu pensamento (ainda que verbalizado para os íntimos), seja capaz de causar a desgraça alheia ou a minha própria. Aliás, as evidências apontam o contrário. Canso de desejar e mentalizar coisas que não acontecem. Também devaneio sobre catástrofes que não se realizam. Toda vez que entro num avião, por exemplo, não consigo afastar completamente a idéia de que ele vai cair e acabo fantasiando também sobre detalhes do acidente e da reação dos familiares e amigos que deixaria para trás. Às vezes, tomada de um espírito otimista e corajoso (provavelmente induzido por um lexotan ou um rivotril), imagino que tudo vai correr às mil maravilhas. Mas, quando chega aquela turbulência forte, serenamente visualizo a queda da aeronave no oceano. O que tem que ser, será, penso, fatalista. É a tal aceitação...
    Pode ser que eu esteja falando um monte de bobagens. Desculpem. Talvez esteja completamente equivocada e seja a única pessoa que se irrita com gente que está sempre felicíssima, curtindo adoidado. Gente que não fala mal de ninguém, nunca reclama da vida, não tem mau humor e parece que não sofre. Sabe gente fofa? Eu conheço no máximo umas 3 pessoas que são efetivamente fofas. Uma delas é a Mary Poppins (link para vídeo de "Just a spoonfull of sugar" abaixo). Já a Pollyanna, essa nunca me enganou. Ô guria falsa... :) :) :)

https://www.youtube.com/watch?v=vLkp_Dx6VdI

 

terça-feira, 11 de outubro de 2011

O CARRASCO 18


    Ainda bem que você pôde me receber, assim, de uma hora pra outra. Eu devia ter te procurado antes, logo que essa loucura toda começou... Mas demorei pra acreditar que Luisa ia mesmo ter esse filho. E também tentei ignorar as mudanças de Antonio. Agora estou com muito medo. Há dois anos atrás, quando eu larguei a terapia, estava tudo tranqüilo na minha vida. As meninas iam bem, o casamento tinha melhorado com aquela sacudida, o meu trabalho estava sendo reconhecido e bem remunerado. Agora, parece que está tudo de pernas pro ar. Luisa embarcou nessa loucura de ter um filho. Imagina que eu vou ser avó, aos 42 anos de idade... Mas, o pior de tudo, que, de certa forma, acho que é também a razão disso tudo, é a mudança de comportamento do meu marido. Não o reconheço mais. E não me reconheço tampouco. Nunca imaginei que aceitaria as coisas que venho aceitando. E agora não falo só da gravidez de Luisa e da forma como ele manipulou a menina a desistir de um aborto... O que está me assustando é o comportamento sexual de Antonio. E o meu. Ele sempre foi carinhoso, atencioso. Tomava a iniciativa, sabia me agradar e tudo mais. Mas, não era agressivo, nem insistente. De repente, na mesma época em que começou essa confusão toda, ele mudou. Não sei se tem a ver com o novo trabalho. É, porque ele mudou de trabalho. Continua sendo funcionário do Estado, mas agora tem um cargo secreto, em que trabalha apenas meio expediente e ganha o dobro do que ganhava antes. Talvez seja isso. Acho que antes ele se sentia um pouco diminuído porque ganhava menos que eu. Agora, ganha mais e ainda tem esse mistério todo. Que eu não gosto nada, nada... Mas o que eu posso fazer? Enfim, foi depois disso que ele começou a ficar mais agressivo. Mudou a pegada. No começo, até achei excitante. Mas, ontem, fiquei assustada. Cheguei tarde do trabalho e as meninas já estavam deitadas. Ele me chamou até o nosso quarto, onde havia um embrulho enorme, do tamanho de um móvel. Disse para eu ir dar boa noite para as crianças e depois voltar, que ele ia me mostrar a surpresa que tinha comprado para nós. Quando voltei, estava lá uma cadeira horrorosa, parecia uma cadeira ginecológica antiga, sei lá... Ele fechou a porta e, com o novo tom que agora usa na cama, me falou pra tirar a roupa e sentar na cadeira. Eu obedeci. Tentei fazer graça, levar na brincadeira, mas ele parece incorporar outra pessoa e acabo emudecendo. É muito estranho, fico com receio de um homem que conheço há mais de 15 anos. Só que não é mais o mesmo. Se fosse o antigo, eu riria e diria que prefiro a cama. Mas, do jeito que ele fala, me dá medo, me excita, e acabo fazendo o que ele manda. Acho que tem um lado meu que realmente gosta desse novo Antonio dominador. Posso relaxar e aproveitar, sem culpa, qualquer perversão que ele invente. Mas, no dia seguinte, me sinto muito mal. Acho que ele está doente e que eu estou pirando... Ele me amarrou, mais uma vez... Fico com vergonha de entrar em detalhes. Tenho vergonha de olhar pra ele, de manhã. Ele age como se não tivesse acontecido nada demais. Apenas uma noite "caliente". (...) Eu sei, eu sei que, entre quatro paredes, tudo é permitido, desde que os dois queiram. O problema é que eu acho que não quero e, no entanto, não consigo recusar.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O CARRASCO 17

       Perfeito!, pensa Antonio, enquanto finge consternação com o sofrimento da filha. Não quer parecer insensível. Mas, tem certeza de que, no final das contas, a mudança da família de Marquinhos será melhor para todos. Procura animar Luisa:
       - Minha filha, você lembra que amanhã fica pronto o resultado do exame de sangue que diz o sexo do bebê? À tarde, quando eu voltar do trabalho, podemos passar no laboratório pra buscar e ir direto ao shopping comprar mais umas roupinhas... O que você acha? – pergunta, acariciando a cabeça da menina.
       Por alguns instantes, chega a arrepender-se da abordagem. Luisa soluça com mais intensidade. Um pouco depois, no entanto, parece acalmar-se e, fungando um pouco, responde:
       - Obrigada, pai... Se for menina, você me leva naquela loja onde a gente viu aqueles vestidinhos coloridos?
       - Claro, Luisa, te levo onde você quiser... E se for menino? – pergunta, sem disfarçar sua preferência.
       - Ah, pai, se for menino a gente compra aquele macacão que imita um terno, lembra? – responde, esboçando um sorriso.
       - Ótimo! Então está combinado. Agora vamos dormir porque a senhora precisa descansar pra esse bebê crescer forte.

       Antonio não cabe em si de felicidade com a confirmação de que o bebê é do sexo masculino. Para completar sua alegria, Luisa decide que vai dar-lhe o nome do pai: Antonio.
       - O apelido pode ser Toni, ou Tonico...- explica para a mãe.
       - Ou Toninho. – diz Antonio, enquanto observa o esforço que a mulher faz para disfarçar o ciúme. Uma pena que ela não consiga compartilhar de sua felicidade. Mas, na noite seguinte, irá surpreendê-la. Tirou o dia de folga e agendou a entrega da encomenda para o período da manhã. Assim, não haverá ninguém em casa e ele poderá preparar o quarto sem intromissões. Não quer que Vera veja do que se trata, logo de cara. Vai embrulhar tudo e explicar que é uma surpresa, para depois que as meninas dormirem. Fica excitado só de imaginar.
       - Hein, pai!!! Hellôô!! Tô falando com você...- Luisa o cutuca, impaciente.
       - Sim, filha, desculpe, me distraí... O que foi?
       - Você tinha algum apelido diferente, quando era pequeno?
       - Meus pais me chamavam de Tonho. Mas, eu não gostava... Preferia Toni... – recorda, melancólico. Lembra que o pai o chamara de Tonho até os últimos dias. Dizia que Toni era coisa da veado. Já a sua mãe, sempre respeitou sua vontade. Depois que lhe pediu, aos 14 anos, que parasse de chamá-lo de Tonho, ela pouquíssimas vezes deixou escapar o apelido de infância. Na frente de seus amigos, adotava o moderno Toni. Em particular, alternava Toninho e Antonio, conforme a gravidade do assunto. Mas, em geral, chamava-o  apenas de “meu filho”.
       - Ai, Tonho! Ninguém merece! Parece nome de jagunço de novela – comenta Luisa, rindo.
       - É verdade, minha filha, por isso mesmo que eu não gostava...
       - Não combinava com a vida de playboy que seu pai levava na juventude... – implica Vera, enquanto lava a louça, de costas para a filha e o marido, sentados à mesinha da cozinha.
       Antonio pensa em retrucar, mas escolhe fingir que não percebeu a cutucada e responder com bom humor:
       - Você bem que gostava de um playboy, não é, meu amor? – e dá-lhe um tapinha na bunda.
       - Antonio!!! – reage a mulher, com falsa indignação.
       As coisas já estão melhorando. Amanhã ela vai ter uma noite inesquecível. Antonio levanta-se, beija a mulher e a filha e declara:
       - Bom, eu vou me deitar, porque hoje o dia foi muito cheio de emoções e estou esgotado... Boa noite!

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

AUTOFILIA

Definologia. A autofilia é o excesso patológico da auto-estima. 

Sinonimologia: 1. Autofilismo; egolatria. 2. Amor próprio excessivo. 3. Narcisismo. 4. Auto-admiração. 

Antonimologia: 1. Alocentrismo. 2. Baixa auto-estima.

(definição encontrada via Google, já que o Aurélio aqui de casa sumiu e eu não gostei da definição do Houaiss: “amor a si mesmo, de caráter patológico”).


         Descobri a existência e o significado da palavra autofilia, outro dia, por acaso, quando chegou o novo dicionário Aurélio no meu trabalho e fui consultar, a pedido de uma colega, se “autoestima” ainda tinha hífen (não vou responder a essa pergunta: no Houaiss tá sem hífen e no Google encontrei a definição supra com hífen...).

         Desde então, já utilizei tanto a nova palavra, que nem sei como sobrevivi 41 anos sem conhecê-la. Talvez ela não fosse mesmo tão necessária há 10, 15 anos atrás. Mas, hoje em dia, deparo-me com exemplos de autofilia a toda hora.

         No entanto, é preciso ter cuidado para discernir a verdadeira autofilia de outras condições que o aparente excesso de autoestima pode estar mascarando, como o velho complexo de inferioridade, a excessiva insegurança ou a necessidade exagerada de auto-afirmação.

         Ora, tais males afetam as pessoas há séculos, mas, por algum motivo, nos últimos tempos, parecem ter se agravado. Se, antigamente, as pessoas se satisfaziam com um elogio dos pais, de um professor, de um chefe, ou até de um colega, agora, isso não basta mais.

         Não sei se é a cultura da fama ou se é simplesmente o excesso de comunicação gerado pelas novas redes sociais. Mas é preciso ter muitos amigos, que precisam curtir e comentar muito o que você posta, para que todos vejam como você é querido, popular, inteligente, competente ou seja-lá-o-que-for que você está anunciando ser.

         Eu mesma, estou aqui escrevendo este texto para publicar no meu blog e depois postar o link no Facebook. Por quê??? Porque quero que as pessoas leiam o que tenho a dizer; porque quero que gostem, que concordem, que reflitam, que comentem? Porque gosto de escrever??? Porque quero chamar a atenção? Porque sou carente? Ou porque estou de saco cheio de ver as pessoas “se achando”, sem a menor vergonha na cara? É, porque, cá entre nós, eu também “me acho” (alguns dias mais, outros menos), mas disfarço...

         Sei lá, o facebook é um tremendo “Mira, mamá!!!” (como diz o meu pai a respeito da piscina do Costão do Santinho, resort de Florianópolis, em janeiro), só que os 500 amigos de cada um não têm nem ao menos o parco interesse que as mães têm em ver o décimo mergulho de costas do filho...

         Mas não é só na internet que a autofilia impera. Por todos os lados, as pessoas querem ser o máximo. Ninguém se contenta mais em ser bom no que faz. Tem que ser excelente, maravilhoso, melhor que os outros. E há uma enorme necessidade de elogios que, caso não sejam recebidos, espontaneamente, de terceiros, costuma ser suprida pelo próprio autofílico, que se auto-elogia sem o menor pudor.

         A primeira vez que ouvi, há alguns anos atrás, uma pessoa no meu trabalho comentando: “Fulano me adora!”, pensei com meus botões como devia ser maravilhoso viver naquela certeza de ser objeto de adoração, ainda mais quando eu desconfiava seriamente de que, no caso, a afirmativa estava longe de ser verdadeira...

         Aliás, a sinceridade está muito desvalorizada. Ninguém quer uma crítica sincera, por mais construtiva que seja; preferem um bom elogio, ainda que fruto de puxa-saquismo ou necessidade de agradar. O autofílico não percebe a diferença entre um elogio genuíno e adulação interesseira.

         Outro dia, uma amiga postou no FB uma reportagem com uma psicóloga americana que contesta a “cultura da autoestima” (http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/949633-cultura-da-autoestima-e-contestada-por-psicologa-americana.shtml ).

         Pensei que leria uma negação daquela teoria de que os pais devem elogiar muito os filhos, para cultivar a autoestima. Talvez a tal psicóloga tivesse descoberto que isso é uma besteira e que a autoestima e a segurança de um adulto nada têm a ver com elogios e demonstrações de aceitação por parte de seus pais. Como naquele filme do Woody Allen, em que ele acorda, após hibernar por 20 anos, e é informado de que os cientistas descobriram que açúcar é maravilhoso, etc.

         Mas, não. A tal psicóloga, na realidade, falava que as pessoas deveriam ter mais autocompaixão; que não deveriam exigir tanto de si mesmas. Enfim, era outra questão, mais ligada, a meu ver, à competitividade do que à autoestima (talvez tenha havido alguma problema de tradução). Pessoas cuja autoestima dependia de atingirem determinadas metas e que a psicóloga em questão achava que deveriam exigir menos de si mesmas. Nada a ver com o que eu estou falando: pessoas cuja autoestima parece florescer no deserto...

         Autoestima, segundo o Houaiss, é a “qualidade de quem se valoriza, se contenta com seu modo de ser e demonstra consequentemente, confiança em seus atos e julgamentos”.

         Deveria ser uma coisa de dentro para fora, não é não? Mas tem gente que vai procurar no outro...

terça-feira, 13 de setembro de 2011

O CARRASCO 16



        Ao voltar do almoço com Isabel, Vera encontra Antonio e Luisa na sala, em meio a um monte de sacolas e embrulhos.
        - Mãe, que bom que você chegou! Olha as coisas lindas que a gente comprou pro bebê! – exclama Luisa, mostrando um macacãozinho amarelo.
        - Ai, que fofo! – grita Isabel, praticamente empurrando a mãe e atirando-se no sofá para ver as compras da irmã.
        Antonio pega uma sacola enorme e chama a esposa, que ainda está atônita, parada na entrada da sala:
        - Vera, pra você não achar que nós só compramos futilidades, tem aqui uns pacotes de fraldas...
        - Fraldas, Antonio??!! – interrompeu Vera, indignada, sem saber o que dizer. Estava tudo errado! Luisa não devia ter o bebê. E, se fosse para tê-lo, não deveria sair sozinha com o pai para comprar suas primeiras roupinhas (nem muito menos fraldas!). Esse era o papel da avó! Mas, é claro que não a chamaram porque sabem que ela é contra... Aliás, se tivesse sido convidada, provavelmente teria recusado. Então, ficava difícil culpá-los... Não, não ficava nada difícil, a culpa era mesmo de Antonio. Ele estava manipulando Luisa e esse passeio de compras era parte disso. Mas, não podia passar recibo, isso só a afastaria mais da filha e sepultaria de vez suas chances de reverter a situação.
        - É, Vera, fraldas! É bom ir comprando aos poucos, porque é uma despesa e tanto... – responde Antonio, rindo, como se fosse o mais inocente e bem-intencionado dos homens.
        “Quem não te conhece que te compre”, pensa, forçando um sorriso amarelo e concordando com o marido:
        - É mesmo, só não sei se temos espaço para um estoque grande - e, voltando-se para Luisa, desconversa – Deixa eu ver esse jeans... Que coisinha mais bonitinha...
        Fica mais alguns minutos com as meninas, esforçando-se para não deixar transparecer o quão contrariada está. O genuíno entusiasmo de Isabel, soltando gritinhos a cada novo pacote aberto, facilita a tarefa. Aproveita o toque do telefone para deixar a sala. No quarto, a amiga lhe pergunta, ao telefone:
        - E aí, como estão as coisas?
        - Nem sei – responde, sentando-se na cama – Não reconheço mais meu marido e minha filha está praticamente me ignorando... Estão lá na sala, agora, vendo as roupinhas que compraram para o bebê... – choraminga.
        - Ah, Vera... Não fica assim... Você não tem como impedir... Então, talvez seja o caso de tentar curtir com eles...
        - Eu sei, eu sei, você tem razão. Mas ainda não perdi totalmente as esperanças... Ainda dá tempo pra Luisa mudar de idéia...


        Mas a esperança, embora seja a última a morrer, não faz parar o tempo. Nas semanas seguintes, Vera mergulha no trabalho, enquanto Antonio e Luisa continuam dedicados ao bebê. Até conseguem arrastar Marquinhos para o primeiro ultrassom. “Foi tão emocionante, mãe, ouvir o coraçãozinho dele batendo”. As palavras de Luisa deixam Vera arrasada. Que raio de mãe era ela, que não acompanhava a filha adolescente num momento desses? Mas a verdade é que sequer tinha sido convidada... “Até o Marquinhos se emocionou, não foi, pai?”.
        Dois dias depois, Vera chega do trabalho e encontra a filha aos prantos, estirada no sofá da sala.
        - O que houve?! – pergunta, alarmada.
        A menina chora e soluça tanto, que é difícil entender o que se passa:
        - O Marquinhos... O Marquinhos... – e chora.... e soluça...
        - O que tem ele? Vocês brigaram? – a pergunta é retórica, porque é óbvio que o casal, que já não estava bem, só podia ter rompido...
        Vera abraça a filha e tenta acalmá-la para ver se extrai a história toda. Após alguns minutos e um copo d’água, Luisa finalmente consegue esclarecer:
        - O Marquinhos vai morar em Nova Iorque com os pais... Viajam no final do mês... – e se debulha em lágrimas novamente.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

GRAN FINALE


    O Mário era um sujeito muito boa praça. Aliás, empenhou-se a vida inteira para ser assim considerado. Desde a época da escola, preocupava-se com sua popularidade. Doía-lhe a alma saber que alguém não gostava dele, ainda que ele mesmo não tivesse esse alguém em alta conta... Então, fazia de um tudo para ser querido. E, como já era, por natureza, amável, com o esforço extra, era bastante popular. Bom de papo, tinha assunto para conversar tanto com a avó do colega de trabalho, quanto com o cunhado da esposa. Sabia, como ninguém, evitar atritos. Ouvia as opiniões políticas mais diversas, sem jamais discordar. Fazia comentários pertinentes, que podiam ser interpretados pelo interlocutor como melhor lhe conviesse. Sempre demonstrava interesse no trabalho, na família, nas conquistas e nas doenças de todos. Não negava favores aos amigos e até aos amigos dos amigos. De uma carona a um dinheiro emprestado, o Mário era "o cara". E como conhecia gente! Era quase impossível entrar num restaurante onde não conhecesse alguém. Na rua, também não andava mais do que alguns quarteirões sem parar para cumprimentar um amigo. Aliás, Mário jamais fingia não ter visto um conhecido porque estava com pressa. Não, sempre parava para conversar e fazia a pessoa sentir que o encontro tinha sido um grande prazer para ele. No telefone, nunca tomava a iniciativa de desligar, pois poderia parecer rude. Sempre atendia ao celular e não avisava ao interlocutor que estava jantando ou dirigindo, para não constrangê-lo ou apressá-lo. Enfrentava, com galhardia, as obrigações sociais mais detestáveis. De batizados e festinhas infantis a velórios e missas de sétimo dia, passando por formaturas e casamentos, Mário não inventava desculpas: fazia-se presente, alegre ou triste, conforme demandasse a ocasião. Em seu íntimo, sabia que toda a atenção que dispensava às pessoas lhe seria retribuída. E tinha razão. No seu aniversário, não fazia festas: temia não ter condições de convidar todo mundo ou esquecer alguém. No entanto, várias vezes foi surpreendido por comemorações organizadas por amigos e colegas de trabalho. Era verdadeiramente querido. Quando adoeceu, chegou algumas vezes a desejar que não fosse tão popular. Afinal, estava fraco para receber tantas visitas e telefonemas. Mas, no fundo, confortava-o a imagem do cemitério repleto no dia de seu enterro. Envaidecia-se pensando que seu velório faria transbordar a capela 1 do São João Batista e que o cortejo inundaria as vielas de pessoas das mais diversas origens. Parentes, colegas de escola, a turma da Rua Miguel Lemos, a galera da faculdade, da praia, do primeiro estágio, do futebol de domingo, da academia, o pessoal do escritório, o português da padaria, o dono da banca de jornal, seus clientes, os amigos dos filhos, todos os amigos cultivados ao longo de tantas décadas de vida. Haveria muitas coroas de flores e homenagens. Talvez até um discurso ou outro. Não fazia questão de lágrimas. Queria apenas, na hora da partida, ser lembrado por todos como o querido Mário, amigo de fé, irmão, camarada... Seria seu gran finale.
    Foi uma pena o que aconteceu com o Mário... Imaginava que seria sepultado no jazigo da família de sua mãe, no cemitério São João Batista, no bairro de Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro. No entanto, uma semana antes dele, faleceu sua irmã, Irene, num acidente de motocicleta, aos 65 anos de idade, deixando uma filha e dois netos. Não houve tempo para preparativos ou maiores questionamentos. Mário sequer foi consultado, já que a família julgou desnecessário e até cruel submetê-lo à notícia do repentino e intempestivo falecimento da irmã querida, quando estava ele mesmo em seus últimos dias de vida, sob forte sedação. Irene foi enterrada no jazigo do São João Batista, na quinta-feira, dia 04 de agosto de 2011. Na quarta-feira seguinte, dia 10.08.2011, morreu Mário. Fazia um calor incomum para aquela época do ano. No pouco tempo que tiveram para se organizar, a mulher e os filhos de Mário trataram de providenciar o rápido traslado do corpo para Volta Redonda, cidade natal da família de seu pai, que possuía um belo jazigo no cemitério local. Mário nunca compartilhara com sua esposa as fantasias a respeito de seu próprio funeral, de forma que não lhe passaria pela cabeça que estaria contrariando os desejos do marido ao enterrá-lo junto à sua avó mais amada, que ajudara a criá-lo desde pequeno e da qual sempre falava com grande carinho. Jamais poderia imaginar a frustração de Mário, pairando sobre o minguado cortejo que acompanhava seu corpo terreno para a despedida final. Parecia haver mais coroas de flores do que pessoas. Estavam lá a mulher, os filhos e alguns amigos mais chegados. Um colega de trabalho até alugara uma van para levar o pessoal do escritório. Mas, em plena quinta-feira, eram poucos os que podiam se dar ao luxo de perder uma dia inteiro de trabalho para ir a um enterro em Volta Redonda. Ainda que de Mário, grande sujeito, boa praça, sangue bom... Da próxima vez, optaria pela cremação, pensou, resignado, enquanto observava o pequeno grupo afastar-se, compungido e sereno, em direção aos veículos estacionados junto ao portão de entrada.