segunda-feira, 24 de outubro de 2011

POLLYANNA, A FOFA


    Eu li Pollyanna quando tinha uns 12 anos. Não lembro de nada. Ou melhor, quase nada. Só lembro que Pollyanna vivia levando na cabeça e continuava achando tudo lindo. Naturalmente, o final devia demonstrar que valia a pena ser como a Pollyanna e ver sempre o lado positivo, mesmo das maiores desgraças. Pois eu não aprendi com Pollyanna.
    Aliás, não acredito em pessoas que vivem sempre sorrindo, perdoando, desapegadas e super alto-astral, aconteça o que acontecer. Não agüento gente que diz ter inveja "branca". Inveja é inveja: não tem cor (e nem deve ser politicamente correta essa distinção...). O máximo que posso admitir é a definição que o Zuenir Ventura deu no livro que escreveu para uma coleção sobre os pecados capitais. Inveja é quando você, não apenas quer o que outro tem, mas, quer que ele não tenha. Se você quer para si o que é do outro, é cobiça. E a tal da inveja "branca" seria apenas admiração. Tá bom... Tem um monte de santo por aí que só sente admiração. Cobiça? Nunca. Inveja? Jamais.
    Então tá. Esse povo superior também não guarda mágoas. Supera rejeição, deslealdade, traição, ofensas, sempre focando no aqui e agora. Nada de sentimentos mesquinhos, como raiva, rancor, desprezo, sede de vingança, etc. Não estou aqui defendendo que a gente deva ficar cultivando e alimentando ressentimentos. É claro que isso não faz bem. Mas, ignorar ou esconder, muitas vezes de si mesmo, que gostaria que o chefe grosseiro tomasse umas porradas ou fosse corneado pela esposa "Amélia"; que a mulherzinha infeliz que roubou seu namorado pegasse uma gonorréia ou perdesse todo o cabelo; ou até mesmo que o sujeito que te deu uma fechada no trânsito recebesse uma bela multa ou enfiasse o carro em um poste na próxima esquina, deve ser ainda pior. Afinal, quem disse que a gente tem que censurar o que sente? Por que todos têm que ser perfeitos? Eu até acredito que algumas poucas pessoas são realmente mais evoluídas e menos acometidas de sentimentos mesquinhos ou, por que não dizer, humanos... Mas, a maior parte, vive envergonhada, a fingir, até para si mesmo, uma nobreza de espírito que não se encontra amiúde.
    Pura culpa. Ou medo de rejeição. Há quem acredite que, desejando mal ao próximo, poderá mesmo atingi-lo e carregará a culpa pelo mal causado até o fim dos dias. Ou pior, há os que crêem no efeito ricochete. Tipo, eu desejo que você sofra e, por isso, eu acabo sofrendo mais. E há os que pensam que somente os perfeitos podem ser amados. Aí a necessidade de perfeição é ainda maior. Assim como é essencial não deixar transparecer qualquer defeito de caráter. E, quando falo defeito de caráter, não estou me referindo às grandes canalhices, mas aos deslizes a que estamos todos sujeitos. Um pouco de egoísmo aqui, uma certa vaidade acolá, um ocasional gostinho pela maledicência. Quem nunca fez uma fofoca, que atire a primeira pedra. E que tédio seria o mundo habitado somente de pessoas perfeitas... Aliás, pessoas perfeitas só existem na nossa fantasia, quando estamos cegos de paixão. Depois que passa a paixão, ou a gente ama o imperfeito, ou vive uma baita desilusão.
    Então, melhor botar pra fora. E, cá entre nós, não acredito que, com a força do meu pensamento (ainda que verbalizado para os íntimos), seja capaz de causar a desgraça alheia ou a minha própria. Aliás, as evidências apontam o contrário. Canso de desejar e mentalizar coisas que não acontecem. Também devaneio sobre catástrofes que não se realizam. Toda vez que entro num avião, por exemplo, não consigo afastar completamente a idéia de que ele vai cair e acabo fantasiando também sobre detalhes do acidente e da reação dos familiares e amigos que deixaria para trás. Às vezes, tomada de um espírito otimista e corajoso (provavelmente induzido por um lexotan ou um rivotril), imagino que tudo vai correr às mil maravilhas. Mas, quando chega aquela turbulência forte, serenamente visualizo a queda da aeronave no oceano. O que tem que ser, será, penso, fatalista. É a tal aceitação...
    Pode ser que eu esteja falando um monte de bobagens. Desculpem. Talvez esteja completamente equivocada e seja a única pessoa que se irrita com gente que está sempre felicíssima, curtindo adoidado. Gente que não fala mal de ninguém, nunca reclama da vida, não tem mau humor e parece que não sofre. Sabe gente fofa? Eu conheço no máximo umas 3 pessoas que são efetivamente fofas. Uma delas é a Mary Poppins (link para vídeo de "Just a spoonfull of sugar" abaixo). Já a Pollyanna, essa nunca me enganou. Ô guria falsa... :) :) :)

https://www.youtube.com/watch?v=vLkp_Dx6VdI

 

terça-feira, 11 de outubro de 2011

O CARRASCO 18


    Ainda bem que você pôde me receber, assim, de uma hora pra outra. Eu devia ter te procurado antes, logo que essa loucura toda começou... Mas demorei pra acreditar que Luisa ia mesmo ter esse filho. E também tentei ignorar as mudanças de Antonio. Agora estou com muito medo. Há dois anos atrás, quando eu larguei a terapia, estava tudo tranqüilo na minha vida. As meninas iam bem, o casamento tinha melhorado com aquela sacudida, o meu trabalho estava sendo reconhecido e bem remunerado. Agora, parece que está tudo de pernas pro ar. Luisa embarcou nessa loucura de ter um filho. Imagina que eu vou ser avó, aos 42 anos de idade... Mas, o pior de tudo, que, de certa forma, acho que é também a razão disso tudo, é a mudança de comportamento do meu marido. Não o reconheço mais. E não me reconheço tampouco. Nunca imaginei que aceitaria as coisas que venho aceitando. E agora não falo só da gravidez de Luisa e da forma como ele manipulou a menina a desistir de um aborto... O que está me assustando é o comportamento sexual de Antonio. E o meu. Ele sempre foi carinhoso, atencioso. Tomava a iniciativa, sabia me agradar e tudo mais. Mas, não era agressivo, nem insistente. De repente, na mesma época em que começou essa confusão toda, ele mudou. Não sei se tem a ver com o novo trabalho. É, porque ele mudou de trabalho. Continua sendo funcionário do Estado, mas agora tem um cargo secreto, em que trabalha apenas meio expediente e ganha o dobro do que ganhava antes. Talvez seja isso. Acho que antes ele se sentia um pouco diminuído porque ganhava menos que eu. Agora, ganha mais e ainda tem esse mistério todo. Que eu não gosto nada, nada... Mas o que eu posso fazer? Enfim, foi depois disso que ele começou a ficar mais agressivo. Mudou a pegada. No começo, até achei excitante. Mas, ontem, fiquei assustada. Cheguei tarde do trabalho e as meninas já estavam deitadas. Ele me chamou até o nosso quarto, onde havia um embrulho enorme, do tamanho de um móvel. Disse para eu ir dar boa noite para as crianças e depois voltar, que ele ia me mostrar a surpresa que tinha comprado para nós. Quando voltei, estava lá uma cadeira horrorosa, parecia uma cadeira ginecológica antiga, sei lá... Ele fechou a porta e, com o novo tom que agora usa na cama, me falou pra tirar a roupa e sentar na cadeira. Eu obedeci. Tentei fazer graça, levar na brincadeira, mas ele parece incorporar outra pessoa e acabo emudecendo. É muito estranho, fico com receio de um homem que conheço há mais de 15 anos. Só que não é mais o mesmo. Se fosse o antigo, eu riria e diria que prefiro a cama. Mas, do jeito que ele fala, me dá medo, me excita, e acabo fazendo o que ele manda. Acho que tem um lado meu que realmente gosta desse novo Antonio dominador. Posso relaxar e aproveitar, sem culpa, qualquer perversão que ele invente. Mas, no dia seguinte, me sinto muito mal. Acho que ele está doente e que eu estou pirando... Ele me amarrou, mais uma vez... Fico com vergonha de entrar em detalhes. Tenho vergonha de olhar pra ele, de manhã. Ele age como se não tivesse acontecido nada demais. Apenas uma noite "caliente". (...) Eu sei, eu sei que, entre quatro paredes, tudo é permitido, desde que os dois queiram. O problema é que eu acho que não quero e, no entanto, não consigo recusar.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O CARRASCO 17

       Perfeito!, pensa Antonio, enquanto finge consternação com o sofrimento da filha. Não quer parecer insensível. Mas, tem certeza de que, no final das contas, a mudança da família de Marquinhos será melhor para todos. Procura animar Luisa:
       - Minha filha, você lembra que amanhã fica pronto o resultado do exame de sangue que diz o sexo do bebê? À tarde, quando eu voltar do trabalho, podemos passar no laboratório pra buscar e ir direto ao shopping comprar mais umas roupinhas... O que você acha? – pergunta, acariciando a cabeça da menina.
       Por alguns instantes, chega a arrepender-se da abordagem. Luisa soluça com mais intensidade. Um pouco depois, no entanto, parece acalmar-se e, fungando um pouco, responde:
       - Obrigada, pai... Se for menina, você me leva naquela loja onde a gente viu aqueles vestidinhos coloridos?
       - Claro, Luisa, te levo onde você quiser... E se for menino? – pergunta, sem disfarçar sua preferência.
       - Ah, pai, se for menino a gente compra aquele macacão que imita um terno, lembra? – responde, esboçando um sorriso.
       - Ótimo! Então está combinado. Agora vamos dormir porque a senhora precisa descansar pra esse bebê crescer forte.

       Antonio não cabe em si de felicidade com a confirmação de que o bebê é do sexo masculino. Para completar sua alegria, Luisa decide que vai dar-lhe o nome do pai: Antonio.
       - O apelido pode ser Toni, ou Tonico...- explica para a mãe.
       - Ou Toninho. – diz Antonio, enquanto observa o esforço que a mulher faz para disfarçar o ciúme. Uma pena que ela não consiga compartilhar de sua felicidade. Mas, na noite seguinte, irá surpreendê-la. Tirou o dia de folga e agendou a entrega da encomenda para o período da manhã. Assim, não haverá ninguém em casa e ele poderá preparar o quarto sem intromissões. Não quer que Vera veja do que se trata, logo de cara. Vai embrulhar tudo e explicar que é uma surpresa, para depois que as meninas dormirem. Fica excitado só de imaginar.
       - Hein, pai!!! Hellôô!! Tô falando com você...- Luisa o cutuca, impaciente.
       - Sim, filha, desculpe, me distraí... O que foi?
       - Você tinha algum apelido diferente, quando era pequeno?
       - Meus pais me chamavam de Tonho. Mas, eu não gostava... Preferia Toni... – recorda, melancólico. Lembra que o pai o chamara de Tonho até os últimos dias. Dizia que Toni era coisa da veado. Já a sua mãe, sempre respeitou sua vontade. Depois que lhe pediu, aos 14 anos, que parasse de chamá-lo de Tonho, ela pouquíssimas vezes deixou escapar o apelido de infância. Na frente de seus amigos, adotava o moderno Toni. Em particular, alternava Toninho e Antonio, conforme a gravidade do assunto. Mas, em geral, chamava-o  apenas de “meu filho”.
       - Ai, Tonho! Ninguém merece! Parece nome de jagunço de novela – comenta Luisa, rindo.
       - É verdade, minha filha, por isso mesmo que eu não gostava...
       - Não combinava com a vida de playboy que seu pai levava na juventude... – implica Vera, enquanto lava a louça, de costas para a filha e o marido, sentados à mesinha da cozinha.
       Antonio pensa em retrucar, mas escolhe fingir que não percebeu a cutucada e responder com bom humor:
       - Você bem que gostava de um playboy, não é, meu amor? – e dá-lhe um tapinha na bunda.
       - Antonio!!! – reage a mulher, com falsa indignação.
       As coisas já estão melhorando. Amanhã ela vai ter uma noite inesquecível. Antonio levanta-se, beija a mulher e a filha e declara:
       - Bom, eu vou me deitar, porque hoje o dia foi muito cheio de emoções e estou esgotado... Boa noite!