terça-feira, 3 de dezembro de 2013

VELHA, SIM; IDIOTA, NUNCA!



Ai, meu deus do céu, só tem velha! Será que a Elisa me mandou pra uma aula de ginástica da terceira idade? Ela sabe que não tenho paciência pra essas coisas... Aliás, não é ginástica... Não, ginástica é coisa de velho! Agora inventaram outros nomes. Pilates, Alexander, RPG, e agora esse tal de “Programa de Movimento Integrado”. Onde eu estava com a cabeça em topar essa academia zen? Que saudades da Jane Fonda... Bom, pelo menos deve ter umas 3 alunas abaixo de 60. Vou pôr o meu colchonete (é “mat”, vó, disse a minha neta quando o comprei!) do lado daquela mais nova, que deve ter uns quarenta e poucos. 


Não acredito! Aquela velha veio com acompanhante! Não consegue nem andar sem ajuda, como é que pode fazer “movimento integrado”??? Ainda dá tempo de ir embora, fingir que me enganei de sala... E terei perdido uma manhã à toa. Não, vou até o fim, ainda há esperança.


Finalmente... A professora chega com 7 minutos de atraso e fica conversando com as alunas. Basicamente perguntando sobre a saúde delas... A velha diz que tá com dor de cabeça. A professora ri e responde, em tom condescendente: “A senhora andou tomando uma cervejinha no fim de semana, né?”. Não tem 5 minutos que essa mulher entrou na sala e eu já a desprezo. Será que a idade não impõe mais respeito? É capaz dessa velha estar tenho um AVC e a professora a está tratando como a uma criança travessa. 


Mas, o pior é que eu estou aqui. Parte desse grupo patético. Ela me pergunta meu nome. Se tenho algum problema de saúde ou alguma dor. Imagina! Só pressão alta, artrose, bico de papagaio, hérnia lombar, úlcera, bursite no ombro e mais alguns males dos quais não me recordo agora. Minto que estou ótima. Ela me fita com olhar descrente e um sorrisinho forçado, daqueles que a gente reserva a pessoas mais velhas, que dizem que nos pegaram no colo (faz tempo que não dou um desses...). Pede que avise se sentir algum desconforto. 


Ha! Acabou de me conhecer, mas me chama de você. O que, por um lado, me irrita (afinal, até alguns meses atrás eu era Excelência ou, pelo menos, doutora); mas, por outro, me distingue da velha, a quem ela chamou de senhora... Sinal de que reconhece que sou muuuuuuuuuuuuuuito mais jovem. Talvez não seja tão idiota assim.


Começa a aula. Todo mundo em pé e a velha deitada. Uma baboseira de ficar apertando um “macarrão” daqueles de piscina com o pé... Eu sei, eu sei, tem que massagear o pé, etc., etc... Mas me cheira a enganação. Como se não bastasse, quando ela fala para apoiar bem o metatarso no macarrão, ela explica, olhando especificamente para mim, onde fica o dito cujo e ainda me recomenda que fique à vontade para perguntar se não entender algum outro termo. Depois é um tal de rodar o pescoço pra cá e pra lá, até que começam as “mobilizações”.


Bom, as “mobilizações” são um capítulo à parte. Nesta aula, embora o nome seja “Programa de MOVIMENTO Integrado”, ninguém movimenta ou mexe nem um dedinho. Em compensação, não paramos de “mobilizar”. Mobilizamos a coluna, os braços, as pernas, todas as partes do corpo, de forma isolada e também integrada. Devemos respirar pelas costelas e soltar o ar pelas costas. Essa parte é bem difícil pra mim, acostumada que estou a respirar pelo nariz ou, no máximo, pela boca. Quanto às vias de saída de ar, prefiro não entrar em detalhes. 


Mas toda essa mobilização é muito suave. Após 20 minutos, não suei uma única gota. É bem verdade que, em atenção à parte expressiva do público em menopausa, o ar condicionado está fortíssimo. 


Somos, então, orientadas a deitar em nossos “mats”. Mais mobilizações, de barriga pra cima e depois de joelhos, sempre tomando cuidado para não machucar. “Se sentir algum desconforto, pare...”. Olha, eu nunca vi aula de ginástica sem desconforto... Se não tiver desconforto é porque não está exercitando. Exercício é desconfortável e pronto. Confortável é dormir. 


A professora, no entanto, é muito preocupada com eventual desconforto de suas alunas e logo esclarece que, quem quiser, pode mudar o “posicionamento”. “Não tem a menor importância”, acrescenta. Ok, pra mim chega. Posicionamento???? Podemos sair do “posicionamento” de joelhos para o “posicionamento” de bruços? Não existe mais posição? E, além disso, como assim, não tem a menor importância??? Não tem uma forma correta de fazer o exercício? 


Calma. Respira. Faltam só 10 minutos. Não diga nada. Fique em silêncio. Você não precisa voltar aqui nunca mais. Meu olhar cruza rapidamente com o da moça a meu lado. Parece que também é sua primeira aula. Tento um sorriso cúmplice. Ela corresponde, mas faz sinal para eu acompanhar o exercício, do qual havia me desligado, e explica: “É para tentar alcançar entre as escápulas... Aqui, ó! Os antigos omoplatas...”.


Claro, outra idiota! Afinal, o que uma mulher dessa idade está fazendo em uma aula de “movimento integrado”, em plena segunda-feira, às 11:30 da manhã?



sábado, 22 de junho de 2013

EXPECTATIVAS IRREAIS




Um casal assiste à televisão, deitado na cama. Na tela, as manifestações do mês de junho. A multidão de branco, tomando conta das ruas, levando seus cartazes apartidários. O jornalista foca num grupo de jovens que carregam bandeiras contra a corrupção. Adolescentes manifestam, de forma pouco articulada, sua indignação com “isso tudo que está aí”, especialmente com a “corrupção dos políticos”.


De repente, a mulher, que assistia a tudo compenetrada, começa a chorar e volta-se para o marido:


- Chega, meu bem! Você não está vendo? O povo está nas ruas pedindo... Você precisa devolver aquele dinheiro... Não dá mais!


E o homem, perplexo:


- Mas, Lourdes, foi só uma comissão, foi a empresa que me pagou... E era pra nossa viagem de férias...


- Não, Arnaldo, não é desse que eu estou falando... É daquele outro, dos remédios superfaturados... Você não vê que está fazendo falta? As pessoas estão indignadas... E com razão, meu bem... 


Arnaldo, pensativo:


- É, talvez você tenha razão... Parece que a situação nos hospitais está mesmo difícil... Ainda bem que eu tenho uma mulher sensível e inteligente como você... Acho que você está certa mesmo. Mas, se eu devolver o dinheiro, a gente vai ter que cancelar a viagem à Europa...
Lourdes o abraça:


- Eu não preciso de viagem à Europa, só de você... Te amo cada vez mais! Me orgulho de ser sua mulher...



CORTA.




Traficantes embalam cocaína em barraco na favela, enquanto assistem à televisão. Armas enfiadas na cintura ou sobre as mesas. Perto da TV, sentado numa poltrona, o chefe toma uma cerveja. O jornal passa cenas de manifestação na Av. Vieira Souto. Pessoas vestidas de branco, na maior parte mulheres. Os cartazes pedem o fim da violência. Alguns retratam jovens mortos em assaltos ou por balas perdidas. A jornalista entrevista uma mulher que usa uma camiseta com o retrato da filha morta estampado. Conta que a menina morreu na faculdade, vítima de bala perdida oriunda de confronto entre polícia e traficantes na favela próxima. Chora. Depois, é a mãe de um rapaz, viciado, desaparecido. Ela apela a qualquer um que tenha notícias dele, mostrando uma foto. A câmera volta para o grupo, que leva bandeiras “Pela Paz” e entoa um “Chega de violência!”.


O chefe não tira os olhos da telinha, hipnotizado. Subitamente, volta-se para seus homens:


- Elas estão certas! Eu não aguento mais... Não quero carregar essa culpa por tantas vidas desperdiçadas... Jovens! Estudantes! Filhos! E pra quê? Será preciso tanta violência?


O bando se entreolha, atônito. Mudo. O chefe levanta-se e, inflamado, prega:


- É verdade! Chega! Me entreguem suas armas. Agora! Vamos lá! A gente pode fazer melhor!


- Mas, Peneira, como a gente vai defender a boca sem armas?


- Dá-se um jeito, dá-se um jeito... O que não dá é pra continuar sacrificando vidas inocentes...

 Ah, Zecão, vai lá no alto e solta aquele moleque que a gente ia queimar... Não vai mais ter micro-ondas no meu morro...



CORTA.



Pronunciamento da Presidenta Dilma após as manifestações de junho de 2013:


- Brasileiras e brasileiros, acompanhamos com muita atenção os protestos. Ouvimos a voz do povo e concordamos plenamente com ela. De fato, o Senador Renan Calheiros não tem condições morais para presidir o Senado, de forma que vou tratar de expulsá-lo do cargo até o final do mês. O Feliciano, então, nem se fala, é um cretino escroto e podem considerá-lo carta fora do baralho. Corrupção eu também não aguento mais e já providenciei um decreto que vai exterminá-la completamente. Podem esquecer a Pec 37, já está previamente vetada. Políticos acusados de corrupção serão imediatamente presos, sem maiores investigações. E vou acabar com os partidos. Aliás, vou acabar com os políticos, que assim há menos risco de corrupção...


A TV começa a chiar, a imagem a tremer. Sai do ar.



FIM


quarta-feira, 29 de maio de 2013

a outra

O que eu vi nele? Ela. Se era bom o suficiente para Helena, seria, também, para mim. Ele me confidenciou que ela quase nunca o beijava. Então eu o beijei. Sem mais, nem menos. Na escada de serviço do prédio, onde estávamos a pretexto de fumar. Talvez seja o cheiro de cigarro?, sugeri. Não, ela disse que não gosta de beijar, respondeu, e beijou-me. Beijava bem, com intenção e intensidade. Não tinha mau hálito. A barba, muito espessa, arranhava a pele. Mas isso não era motivo para deixar de beijar. Talvez fosse, para Helena, pensava, enquanto ele me imprensava na parede e enfiava a mão por baixo do meu vestido. Passamos a nos encontrar duas vezes por semana. Minha pele vivia irritada, descamando. Um ano depois, quando Helena descobriu, ele quis mudar para a minha casa. Eu não aceitei. Minha pele ficou ótima.




Raul foi casado com Marina por quase 15 anos e está com Fernanda há 5. Elas são muito amigas. Mulheres civilizadas. Fortes, bem-sucedidas, bonitas. É de um homem como Raul que preciso. No começo, ele não me dá muita bola. Mas, sei esperar. Ficamos amigos. Sempre o encontro na hora do almoço. Trabalha no prédio ao lado do meu escritório. Fico na portaria, fingindo falar ao telefone, até vê-lo passar. Quase sempre dá certo. É um homem de rotina. Fala muito de Fernanda. Eu ouço com atenção. Espero. Sempre vale a pena. Em alguns meses, a crise chega. Fernanda não gosta de rotina. Eu gosto. Às segundas e quartas, almoçamos no motel. Às terças e quintas, Raul almoça com os amigos e eu no escritório. Às sextas, emendamos um almoço tardio com uma happy hour e depois transamos no meu apartamento. 



Seis meses depois, Raul aparece na minha casa, no sábado, carregando uma mala. Contou tudo para Fernanda e foi embora. Eu o mando para um hotel. Ele não compreende, mas vai. No domingo, Marina me procura, furiosa. Qual é o seu problema?, grita. Ela ainda é muito bonita. Eu a convido para entrar. Ofereço uma bebida. Espero que se acalme. Podemos ser amigas. Eu não tenho problema, tenho método. 


foto: Marcelo Huet Bacellar

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Quem é ela? Ou Sexo x Realidade

texto de Jorge Henrique Cordeiro - para ser lido após

 


- Você volta amanhã?

- É, minha irmã caiu no banheiro e precisa ir ao médico. Desculpe, não tem outro jeito, preciso voltar.

- E não tem ninguém que possa levá-la? Tem que ser você?

- O que você quer que eu faça? Deixe minha irmã se virar sozinha?

- Tá, eu sei, eu sei, ela ajudou a criar você quando sua mãe morreu, blá blá blá…

- Você é muito egoísta. Não gosto desse seu jeito…

- E eu não gosto quando você fuma esse cigarro fedorento no meu quarto. Pode pelo menos ir pra varanda?

- Engraçado, você dizia que gostava até do cheiro, que deixava um gosto bom na boca, que me dava um cheiro de macho.

- Tá, eu sei, mas você anda fumando muito. O cheiro desse troço é forte demais.

- Você podia ser mais compreensiva num momento difícil como este. Cadê aquela mulher doce que conheci na viagem?

- Deve ter se perdido junto com minhas malas na volta… Aliás, tenho que ligar pra companhia aérea pra ver se já acharam. Me passa a bolsa?

- Levanta e pega, uai.

- Grosso!

- Grande e grosso! E você gosta.

- Babaca. Deve ser por isso que nenhuma mulher quis casar com você. Quem vai querer conviver com um ogro?

- Mulher não falta nesse mundão que queira a boa vida que posso dar a elas. Mas casar pra quê se sempre tem uma dona solta por aí…

- Caramba, o que foi que vi em você? Me diz?

- Um homem como deve ser e Deus permite.

- E ainda carola! Céus!

- Seu problema é falta de Deus, já te falei…

- E o seu é falta de noção. Vai, volta pra ajudar sua irmã. Me deixa dormir.

- Para de bobagem e vem cá fazer um chamego no seu homem…

- Sai com essa piroca pra lá. Hoje não vai rolar nada. Perdi o tesão.

- Deve estar numa das malas extraviadas. Mas tudo bem, eu dou conta, e você vai gostar mesmo assim…

- Olha, eu sabia que você era bronco, mas tá passando dos limites. Vou dormir, boa noite. Se quiser, pode ficar aqui, no quarto ou na sala, se preferir. Mas me deixa. Ou prefere que eu chame um taxi?

- Tá me expulsando? Ára, você se irritou por besteira e ainda quer sair por cima? Tome tenência, muié!

- Fala baixo. Ou melhor, não fale nada. Boa noite!

- Vocês dondocas da cidade são todas iguais, uma hora estão todas derretidas e n’outra mais duras que lombo de mula.

- Fecha a porta quando sair.

- Fecha você.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

MELECA




texto de autor anônimo para ser lido apóshttp://beatrizmoreiralima.blogspot.com.br/2013/04/quem-e-ele-ou-sexo-x-realidade.html 



Tenho 48 anos e, como dizia aquela canção, “já tive mulheres de todas as cores, de várias idades, de muitos amores”, mas nunca deixei que nenhuma delas tomasse conta da minha vida. A única mulher que tinha esse direito era a minha mãezinha, que infelizmente Deus levou muito cedo. Nem a minha irmã, por quem tenho um carinho e um respeito enormes, eu admito que se meta nos meus assuntos.

Então fiquei até sem palavras quando essa moça veio me repreender. Mulher nenhuma me repreende. Aliás, nem homem. Só meu falecido pai, que Deus o tenha. E não era com conversinha mole e fricote, era na vara e no cinto. Meu pai me educou pra ser macho acima de tudo. Não foi pra ouvir sermão de mulherzinha. Pra ficar sendo questionado...

“Ah, por que você nunca se casou? Tem filhos? Você não acha que a sua relação com a sua irmã pode ter atrapalhado o seu relacionamento com as mulheres? Não dá atenção demais aos problemas dela? Afinal, ela não é sua mãe...”. E por aí vai... Será que essas mulheres da cidade não aprenderam a respeitar um homem? Eu por acaso fiquei perguntando por que ela mantém um gato gordo preso dentro de um apartamento? Perguntei por que ela não deu um filho ao sujeito com quem foi casada por quase 10 anos? Falei alguma coisa de ela viajar sozinha pro exterior, se deitando com um desconhecido como uma mulher da zona?

Não. Eu gostei da moça. Cada olhão grande e brilhante... parecia que tinha chorado... Mas, não, tinha o riso frouxo. A pele macia, as carnes no ponto. Não era toda dura e malhada, tinha onde pegar, do jeito que eu gosto. Porque quem gosta de mulher esquálida é viado, assim mesmo é pra vestir e não pra comer...

Uma pena. Eu tava até disposto a relevar um monte de coisa. Fiz que não percebi o jeito dela com minha irmã. Cara de quem tá sentindo cheiro de peido... Não comeu a compota de jaca feita especialmente pra ela. Dieta. Pelo menos comeu o churrasco. Depois apareceu na fazenda na hora que minha irmã tava no hospital e começou a dar ordem nos empregados e mandar fazer as coisas diferente do que sempre fizeram. Não liguei, pra mim, tanto faz.

Tava tudo indo bem. Não exijo muito, a mulher sendo fogosa, cheirosa e sem frescura, pra mim tá bom. O problema começou nessa última vez, na casa dela. Primeiro me azucrinou a paciência porque eu não tinha lido lá uns livros que ela achava que todo mundo devia ler. Expliquei, com toda calma, que não gosto de ler. E ponto. Só leio jornal e revista. Depois começou com umas frescuras na cama. Disse que não tinha mais clima. Ora, meu Deus, mas que clima? O quarto todo fechado, o ar-condicionado ligado, nós dois pelados. O que mais precisa? Só porque o telefone tocou e eu tive que falar um pouco com a filha da cozinheira que estava lá ajudando a minha irmã?

Ainda estava disposto a relevar. Mulher é assim mesmo, são todas cheias de nove horas. Só que aí ela resolveu dizer que eu tinha grudado uma meleca na cabeceira da cama! Peguei minhas tralhas e fui-me embora. Não vou discutir meleca com uma mulher doida. Eu grudei mesmo a meleca lá. Mas foi à noite, porque ela tava dormindo e tava muito escuro pra eu ir até o banheiro. Não quis acender a luz, para não acordá-la, mas tive medo de sair no breu do corredor e dar de cara com o gato. Eu tenho medo de escuro. E não gosto de gatos. Mas jamais diria isso pra mulher com quem estou trepando.


segunda-feira, 29 de abril de 2013

VIAGEM A CANCÚN

texto de Eduardo Haak - para ser lido após

 




Um dia antes de morrer meu pai me contou tudo.


Soube, entre outras coisas, que Zbigniew, que também imigrou para o Brasil e que agora se chama José Constantino, faria uma excursão para Cancún.


Eu supunha ser capaz de reconhecê-lo, mesmo o tendo visto só uma vez, de relance, numa tenebrosa noite de agosto de 1982.


Embarquei no avião e fui dormindo até a escala no Panamá. De lá até o final da viagem não preguei os olhos.


Discretamente me pus a observar as pessoas na área de recolhimento de bagagem.


Homens na faixa de quarenta anos, talvez barnabés federias, mulheres com pinta de bibliotecárias solteironas. 


Vi que um sujeito, talvez o mais velho do grupo, me observava e desviou o olhar rapidamente assim que o notei.


Um ou dois casais em lua-de-mel, caveiras e cactos, mariachis tocando cornetas e berrando arriba.


Odeio viajar em excursão.

 

 
Chichén Itzá é uma cidade arqueológica que foi o centro político e econômico da civilização maia, leio no folheto que nos foi entregue antes de entrarmos no ônibus. 


Estamos indo visitar a pirâmide de Kukulkán.


Ao meu lado está a mulher com quem tomei o café da manhã, uma carioca bonita e simpática, com jeito de apresentadora de telejornal.


Conversamos trivialidades. Se ela perguntar, direi que tenho uma fazenda no Mato Grosso do Sul e que ganhei essa viagem num bingo beneficente. 


Será um modo de testar sua esperteza.


O sujeito mais velho grupo está mesmo cismado comigo. Conheço todos os esgares da dissimulação, cresci vendo o general Jaruzelski na TV e ouvindo meus professores enaltecerem o socialismo enquanto minha mãe passava horas em filas nos mercados de Varsóvia. 


Uma vez escrevi num caderno Jaruzelski imbecil, minha mãe me deu um tapa no rosto.

 

 
Resolvo ficar com Rebeca, a carioca. Parecer um fazendeiro bobalhão em busca de uma aventura sexual será bom para arrefecer um pouco as suspeitas do tal sujeito mais velho do grupo.


Hoje demos de cara um com o outro no restaurante, ele claramente demonstrou ter ficado em pânico. 


Ainda não pude conferir seu nome, nem o ouvi dizer qualquer coisa para checar seu sotaque.


Estou pensando no que vou fazer se ele for mesmo o Zbigniew.


Irei matá-lo?


Rebeca e eu bebemos várias tequilas e subimos para o quarto.



Ela se joga na cama de bruços, levanta o vestido e diz, vem, deita em cima de mim.


Coloco camisinha e chupo demoradamente sua boceta.


O corpo de Rebeca, à medida que sua temperatura aumenta, exala um sutil cheiro de cloro, de piscina, de madeira recém-podada. 


Os cheiros femininos todos. Como são bons.

 

 
A TV noticia um terremoto de sete ponto seis graus cujo epicentro foi no Oceano Pacífico, a apenas cinquenta quilômetros da costa de Cancún, então é dado um alerta de tsunami e todos embarcamos num ônibus e vemos quando as ondas gigantes se aproximam e vão arrebentando tudo, prédios, resorts, quiosques, embarcações, então percebo que Cancún na verdade é Curitiba e vejo que o cemitério onde meu pai está enterrado também foi atingido pelos tremores e a TV informa que há mortos insepultos e túmulos destruídos e que o trabalho de recuperação deverá durar meses, a cidade está sem luz, água, telefone, transporte público e o governo decretou toque de recolher para evitar saques, penso que posso passar a noite no cemitério, mas tenho medo de pensarem que estou morto e de acabar sendo enterrado vivo. 


Acordo sobressaltado com o telefone, o concierge diz que há uma entrega para mim na portaria. Desço e ele me dá um envelope.


Dentro, um bilhete, "1402. 17h30".


Volto a meu apartamento e pego uma faca de trinchar que roubei da cozinha. 


Não sei exatamente ao encontro do que estou indo, preciso me prevenir.


Tomo o elevador e bato no quarto 1402. A porta é aberta.


O que vejo me faz recuar um passo, numa reação instintiva de horror.


Que bom que você veio, o velho diz. Esperei por esse momento desde a primeira vez em que te vi, lá no aeroporto. 


Voz.


Sua voz não tem qualquer sotaque. 


Entra, ele diz.


Tenho um leve impulso de me movimentar, mas me detenho.


Entra, vamos, ele insiste.


Poloneses adultos que aprendem outro idioma, especialmente um idioma neolatino, como o português, jamais perdem o sotaque.


Desculpa, mas você está enganado, respondo, sentindo o horror ceder espaço à comiseração. 


Mas... você me olhou tantas vezes... nesses dias todos...


A voz do velho não tem sotaque, mas tem uma impostação inequivocamente gay. Além disso, ele está maquiado e travestido.


Supus que você fosse outra pessoa, digo. Lamento.

 

 
Zbigniew. 


Meu pai pediu que eu me vingasse de Zbigniew da forma que eu achasse mais justa.


Onde estará ele?

 

 
Varsóvia, 1982.


Zbigniew é um esbirro do Sluzhba Bezpiecienstwa, o serviço secreto polonês. Meu pai teve um caso com sua mulher, Malgorzata. 


Meu pai é preso, acusado de qualquer coisa. Minha mãe é levada junto. 


Zbigniew, numa sala de interrogatório, sodomiza minha mãe com o cabo de uma faca e obriga meu pai a ver tudo.


Eu tenho onze anos, só irei saber disso tudo daqui a três décadas, mas viverei inconscientemente todas as consequências dessa violação.

 

 
Acho que já fui destruído o bastante por essas histórias.

Também acho não tem como Zbigniew não ter como carrasco sua própria monstruosidade, onde quer que ele esteja.

 

 
Ontem o pessoal foi conhecer o templo de Chac Mool, mas Rebeca e eu não conseguimos sair da cama, estávamos exaustos, tínhamos dormido depois de cinco da manhã.


Temos fodido todos os dias. Acho que estou ficando viciado em fodê-la. 


Rebeca me deu um chapéu de presente, ela disse que viu numa loja e achou a minha cara.


Já devem ter dito pra você que você é a cara do Indiana Jones, não?, ela diz. 


Nunca, respondo mentindo.


Rebeca ajusta o chapéu em minha cabeça, mexe nas abas e diz, posso te pedir uma coisa?


Depende.


Posso ou não posso?


Pode.


Você usaria ele hoje?


Usaria como?


Usaria. Durante. Só um pouquinho, vai.


A gente come uma mulher e sempre pensa depois, por que eu fui fazer essa cagada?, estava aqui sossegado, agora sabe-se lá com o que eu vou ter de lidar, toda mulher é maluca, sim, a gente pensa exatamente nisso, mesmo quando a mulher é muito gostosa, como é o caso da Rebeca, e mesmo quando a gente está gostando muito da coisa, como é o meu caso.