quarta-feira, 16 de setembro de 2015

na língua dos golfinhos

            Eles eram como meus irmãos. Nasci com eles. Minha mãe queria um parto natural, na água, com golfinhos... Nós morávamos na praia. Meu pai pescava e minha mãe trabalhava com ervas. Segundo minha mãe, o parto foi um sonho. Não sentiu dor alguma. Os golfinhos a ajudaram, emitindo sons em frequência tranquilizadora.

         Desde criança, eu nadava com eles na praia. Mike, Bill e Tom eram meus melhores amigos. Minha mãe dizia que eu falava a língua deles. Eu não sei. Se era minha mãe quem afirmava, devia estar certa, não é mesmo? Quando me pediam para traduzir os “guinchos” ou “pios” dos golfinhos, eu traduzia. Não tinha certeza se entendia ou se imaginava, mas isso não tinha importância. Eu era especial.

         Uma vez veio um povo da televisão fazer um programa comigo. Eu nadei com os golfinhos, “traduzi” o que diziam, falei com eles, do meu jeito, e todos ficaram convencidos de que eu falava “golfinhês”.

         Às vezes apareciam alguns golfinhos diferentes na praia. Brincava com eles, também, mas não ficavam por muito tempo. Só os meus amigos viviam permanentemente na praia onde eu morava. Todo dia, no final da tarde, ia dar um mergulho com eles. Como a praia era bem deserta, na maior parte das vezes, nadava nua.

         Até que, num fim de tarde de janeiro, estava nadando com Mike há alguns minutos, quando Bill e Tom se juntaram a nós. Tudo transcorria normalmente, até que, de repente, Bill partiu para cima de mim, com seu pênis ereto. Não era a primeira vez que isso acontecia, os golfinhos têm disso... Só que dessa vez foi diferente. Ele parecia mais obstinado, não era brincadeira...  Tentei me proteger junto a Mike, mas ele, ao invés de me ajudar, bloqueou minha passagem. Tom fechou o círculo e me vi encurralada entre os três.

A essa altura, já estava bastante assustada. Não entendia os guinchos e não conseguia me fazer escutar. Desisti do golfinhês e gritei por socorro, mas a praia estava deserta. Assim mesmo, não perdi as esperanças; afinal, se conseguisse chegar à areia, poderia fugir. Nadei com as minhas últimas forças em direção à praia; os golfinhos, ao invés de tentarem me impedir, foram me escoltando.

Mas, quando finalmente me ergui sobre meus pés, com a água na altura da cintura, eles me derrubaram e jogaram de costas na areia. Enquanto eu lutava para manter a cabeça fora d´água, Bill pulou em cima de mim. O peso do cetáceo sobre o meu corpo me empurrou para o fundo. A última coisa de que me lembro é de uma dor lancinante no baixo ventre, como se me rasgasse ao meio. Desfaleci.

Quando acordei, já era noite. A maré tinha baixado e estava jogada na areia. As costas completamente raladas. De minha vagina escorria um filete de sangue. Levantei-me com todo o cuidado. Procurei meu vestido, que havia deixado sobre uma pedra próxima do acesso à estrada. Pela altura da lua, não deviam ser mais de oito da noite. Lua cheia, significando que meus pais não estariam à minha espera. O ritual xamanista começava às oito, do outro lado do vilarejo. Melhor assim, não saberia como explicar a eles o meu estado.

Entrei em casa pela porta da cozinha e fui direto para a cama. Na manhã seguinte, acordei dolorida, ralada e fedida. Os golfinhos exalam um cheiro forte, que gruda na pele. Tirei a roupa de cama e enfiei em um saco, que guardei no canto do armário, para jogar fora mais tarde. Depois me enfiei debaixo do chuveiro e lavei-me longamente, ignorando a ardência provocada pelo sabonete em minhas feridas.

Quando desci para o café da manhã, estava razoavelmente apresentável. Minha mãe percebeu que havia algo de errado, mas aceitou a minha explicação. Uma história vaga sobre como havia prendido o pé em uma alga e quase me afogado, sendo resgatada por Mike, que teria me levado até a areia. Meus pais não acreditariam na verdade. Eu mesma já tinha dúvidas sobre os acontecimentos da véspera.

Parei de nadar com os golfinhos. Atribuí a mudança de hábito a um trauma pelo quase afogamento. Passei a ter pesadelos, dos quais despertava aos gritos, no meio da madrugada. Então minha menstruação atrasou. Ignorei o quanto pude, não queria pensar sobre o assunto. Meu apetite aumentou e logo percebi que era esse o caminho para disfarçar as alterações do meu corpo. Meus pais concluíram que estava deprimida. Foi assim que me levaram ao primeiro psiquiatra. Mas eu não abri a boca. Resisti a seis sessões sem dizer palavra. Ele desistiu de mim.

Quando as dores começaram, era noite de lua cheia e senti um chamado do mar. Nunca mais havia mergulhado. Mas, era como se estivesse possuída. Desci até a praia, tirei a roupa e entrei na água. Os golfinhos estavam à minha espera. Não houve mais dor. Sob a luz da lua e os cuidados dos cetáceos, pari uma sereia. Ela saiu nadando por entre as minhas pernas. Corpo de bebê, rabo de peixe e longos cabelos negros. Montou nas costas de Bill e os quatro partiram para o fundo, em direção à lua que brilhava no horizonte.

O senhor pode não acreditar nisso tudo. Eu mesma, nem sempre acredito. Sonho, devaneio, loucura ou a mais fantástica realidade, pouco me importa. Minha filha vingará o que sofri, arrastando para o fundo do mar os machos tesudos que pretenderem possuí-la.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

PROJETO GIRASSOL




Acabara de pagar as compras e saía do mercado com sua sacolinha, quando se deparou com uma estante cheia de girassóis, bem na porta do estabelecimento. Eram de uma beleza e alegria tão grandes, que não hesitou em pegar o que lhe pareceu mais bonito e voltar para a fila do mercado. 

Quando chegou a sua vez, a caixa, admirando o girassol, perguntou: Ele gira mesmo para o sol? Acho que sim, não sei, respondeu sorridente, enquanto recebia o troco, e voltou para a rua ensolarada, orgulhosa da flor que levava no vasinho em sua mão direita.

Chegando em casa, pegou o seu cachepot de cerâmica favorito e nele acomodou o vaso do girassol, que pôs sobre a cômoda da sala, junto à foto de sua mãe. Ficou lindo e alegre, como o dia lá fora. Sentiu-se feliz.

À noite, seu amante veio jantar. Ao ver o girassol, logo perguntou: E ele gira para o sol? Não sei, respondeu, desta vez, rindo, vou observar. Antes de dormir, quando estava apagando as luzes da casa, virou a flor de costas para a janela e de frente para a parede. 

Uma semana se passou. Lindos dias de sol a entrar pela janela, batendo no chão, atrás do girassol, que permanecia, impávido, voltado para a parede. Curiosa, pesquisou no Google e concluiu que, mesmo em cativeiro, os girassóis giram para o sol. Então, havia algo de errado com o seu, ou com o local que escolhera para ele... 

Começou mudando a flor de lugar. Colocou-a na área de serviço, bem ao lado da janela, mas, de costas, é claro, para incentivar o giro... Esperou uma semana e o girassol não se moveu nem um centímetro.

Voltou ao mercado e comprou mais dois girassóis. Enfileirou-os ao lado do primeiro. No dia seguinte, quando entrou na cozinha, observou que as duas flores novas haviam girado de frente para a janela, onde o sol da manhã batia alvissareiro. O primeiro, o “seu” girassol, permanecia imóvel, de costas para o astro rei.

Sentia-se, de alguma forma, responsável pela inabilidade da flor para mover-se em busca da luz. Não podia conviver com aquele fracasso. Precisava resolver o problema. Foi então que lhe ocorreu uma ideia brilhante. 

Levou o vaso com a flor problemática para o escritório, cômodo que era diariamente inundado pelo forte sol da tarde. Fechou a janela, deixando apenas uma pequena fresta, através da qual entrava um esguio feixe de luz, perpendicular ao piso. Posicionou a flor sobre um pequeno pires com água, de forma que o raio de sol passasse rente às suas costas. Saiu do quarto e fechou a porta atrás de si, deixando o girassol, sozinho, no escuro.

Algumas horas depois, o sol se pôs, para voltar somente na tarde seguinte. O girassol, um pouco murcho, permanecia imóvel. No dia seguinte, porém, quando o sol apareceu, a flor murcha, parecendo buscar suas últimas forças, começou a se mover lentamente e, após 2 horas, completou um giro de 90 graus, de forma que o estreito raio de sol a atingia em cheio, bem no miolo. 

Sua recuperação foi incrível. Alimentado pelo fino veio de luz, o girassol reergueu-se esplendoroso. Mas ela não apareceu para vê-lo. Teria esquecido? 

No banheiro, seu corpo nu jazia estendido no chão. Sangue por todo lado. Um acidente estúpido, diriam, quando a encontrassem. Você sabia que 77% dos acidentes domésticos acontecem no banheiro?

Quando abriram a porta do escritório, ele estava lá. Lindo, iluminado pelo raio de sol, como um bailarino sozinho no palco. O policial que atendeu à ocorrência, achou prudente fotografar a flor, no local em que a encontrou. 

Foram 10 fotos da mulher no banheiro e 15 do girassol no escritório escuro. Depois que o caso foi arquivado, mandou as fotos da flor para um concurso amador. Ficou em terceiro lugar e ganhou um fim de semana numa pousada em Friburgo. Aproveitou a ocasião para pedir sua namorada em casamento.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

VELHA, SIM; IDIOTA, NUNCA!



Ai, meu deus do céu, só tem velha! Será que a Elisa me mandou pra uma aula de ginástica da terceira idade? Ela sabe que não tenho paciência pra essas coisas... Aliás, não é ginástica... Não, ginástica é coisa de velho! Agora inventaram outros nomes. Pilates, Alexander, RPG, e agora esse tal de “Programa de Movimento Integrado”. Onde eu estava com a cabeça em topar essa academia zen? Que saudades da Jane Fonda... Bom, pelo menos deve ter umas 3 alunas abaixo de 60. Vou pôr o meu colchonete (é “mat”, vó, disse a minha neta quando o comprei!) do lado daquela mais nova, que deve ter uns quarenta e poucos. 


Não acredito! Aquela velha veio com acompanhante! Não consegue nem andar sem ajuda, como é que pode fazer “movimento integrado”??? Ainda dá tempo de ir embora, fingir que me enganei de sala... E terei perdido uma manhã à toa. Não, vou até o fim, ainda há esperança.


Finalmente... A professora chega com 7 minutos de atraso e fica conversando com as alunas. Basicamente perguntando sobre a saúde delas... A velha diz que tá com dor de cabeça. A professora ri e responde, em tom condescendente: “A senhora andou tomando uma cervejinha no fim de semana, né?”. Não tem 5 minutos que essa mulher entrou na sala e eu já a desprezo. Será que a idade não impõe mais respeito? É capaz dessa velha estar tenho um AVC e a professora a está tratando como a uma criança travessa. 


Mas, o pior é que eu estou aqui. Parte desse grupo patético. Ela me pergunta meu nome. Se tenho algum problema de saúde ou alguma dor. Imagina! Só pressão alta, artrose, bico de papagaio, hérnia lombar, úlcera, bursite no ombro e mais alguns males dos quais não me recordo agora. Minto que estou ótima. Ela me fita com olhar descrente e um sorrisinho forçado, daqueles que a gente reserva a pessoas mais velhas, que dizem que nos pegaram no colo (faz tempo que não dou um desses...). Pede que avise se sentir algum desconforto. 


Ha! Acabou de me conhecer, mas me chama de você. O que, por um lado, me irrita (afinal, até alguns meses atrás eu era Excelência ou, pelo menos, doutora); mas, por outro, me distingue da velha, a quem ela chamou de senhora... Sinal de que reconhece que sou muuuuuuuuuuuuuuito mais jovem. Talvez não seja tão idiota assim.


Começa a aula. Todo mundo em pé e a velha deitada. Uma baboseira de ficar apertando um “macarrão” daqueles de piscina com o pé... Eu sei, eu sei, tem que massagear o pé, etc., etc... Mas me cheira a enganação. Como se não bastasse, quando ela fala para apoiar bem o metatarso no macarrão, ela explica, olhando especificamente para mim, onde fica o dito cujo e ainda me recomenda que fique à vontade para perguntar se não entender algum outro termo. Depois é um tal de rodar o pescoço pra cá e pra lá, até que começam as “mobilizações”.


Bom, as “mobilizações” são um capítulo à parte. Nesta aula, embora o nome seja “Programa de MOVIMENTO Integrado”, ninguém movimenta ou mexe nem um dedinho. Em compensação, não paramos de “mobilizar”. Mobilizamos a coluna, os braços, as pernas, todas as partes do corpo, de forma isolada e também integrada. Devemos respirar pelas costelas e soltar o ar pelas costas. Essa parte é bem difícil pra mim, acostumada que estou a respirar pelo nariz ou, no máximo, pela boca. Quanto às vias de saída de ar, prefiro não entrar em detalhes. 


Mas toda essa mobilização é muito suave. Após 20 minutos, não suei uma única gota. É bem verdade que, em atenção à parte expressiva do público em menopausa, o ar condicionado está fortíssimo. 


Somos, então, orientadas a deitar em nossos “mats”. Mais mobilizações, de barriga pra cima e depois de joelhos, sempre tomando cuidado para não machucar. “Se sentir algum desconforto, pare...”. Olha, eu nunca vi aula de ginástica sem desconforto... Se não tiver desconforto é porque não está exercitando. Exercício é desconfortável e pronto. Confortável é dormir. 


A professora, no entanto, é muito preocupada com eventual desconforto de suas alunas e logo esclarece que, quem quiser, pode mudar o “posicionamento”. “Não tem a menor importância”, acrescenta. Ok, pra mim chega. Posicionamento???? Podemos sair do “posicionamento” de joelhos para o “posicionamento” de bruços? Não existe mais posição? E, além disso, como assim, não tem a menor importância??? Não tem uma forma correta de fazer o exercício? 


Calma. Respira. Faltam só 10 minutos. Não diga nada. Fique em silêncio. Você não precisa voltar aqui nunca mais. Meu olhar cruza rapidamente com o da moça a meu lado. Parece que também é sua primeira aula. Tento um sorriso cúmplice. Ela corresponde, mas faz sinal para eu acompanhar o exercício, do qual havia me desligado, e explica: “É para tentar alcançar entre as escápulas... Aqui, ó! Os antigos omoplatas...”.


Claro, outra idiota! Afinal, o que uma mulher dessa idade está fazendo em uma aula de “movimento integrado”, em plena segunda-feira, às 11:30 da manhã?



sábado, 22 de junho de 2013

EXPECTATIVAS IRREAIS




Um casal assiste à televisão, deitado na cama. Na tela, as manifestações do mês de junho. A multidão de branco, tomando conta das ruas, levando seus cartazes apartidários. O jornalista foca num grupo de jovens que carregam bandeiras contra a corrupção. Adolescentes manifestam, de forma pouco articulada, sua indignação com “isso tudo que está aí”, especialmente com a “corrupção dos políticos”.


De repente, a mulher, que assistia a tudo compenetrada, começa a chorar e volta-se para o marido:


- Chega, meu bem! Você não está vendo? O povo está nas ruas pedindo... Você precisa devolver aquele dinheiro... Não dá mais!


E o homem, perplexo:


- Mas, Lourdes, foi só uma comissão, foi a empresa que me pagou... E era pra nossa viagem de férias...


- Não, Arnaldo, não é desse que eu estou falando... É daquele outro, dos remédios superfaturados... Você não vê que está fazendo falta? As pessoas estão indignadas... E com razão, meu bem... 


Arnaldo, pensativo:


- É, talvez você tenha razão... Parece que a situação nos hospitais está mesmo difícil... Ainda bem que eu tenho uma mulher sensível e inteligente como você... Acho que você está certa mesmo. Mas, se eu devolver o dinheiro, a gente vai ter que cancelar a viagem à Europa...
Lourdes o abraça:


- Eu não preciso de viagem à Europa, só de você... Te amo cada vez mais! Me orgulho de ser sua mulher...



CORTA.




Traficantes embalam cocaína em barraco na favela, enquanto assistem à televisão. Armas enfiadas na cintura ou sobre as mesas. Perto da TV, sentado numa poltrona, o chefe toma uma cerveja. O jornal passa cenas de manifestação na Av. Vieira Souto. Pessoas vestidas de branco, na maior parte mulheres. Os cartazes pedem o fim da violência. Alguns retratam jovens mortos em assaltos ou por balas perdidas. A jornalista entrevista uma mulher que usa uma camiseta com o retrato da filha morta estampado. Conta que a menina morreu na faculdade, vítima de bala perdida oriunda de confronto entre polícia e traficantes na favela próxima. Chora. Depois, é a mãe de um rapaz, viciado, desaparecido. Ela apela a qualquer um que tenha notícias dele, mostrando uma foto. A câmera volta para o grupo, que leva bandeiras “Pela Paz” e entoa um “Chega de violência!”.


O chefe não tira os olhos da telinha, hipnotizado. Subitamente, volta-se para seus homens:


- Elas estão certas! Eu não aguento mais... Não quero carregar essa culpa por tantas vidas desperdiçadas... Jovens! Estudantes! Filhos! E pra quê? Será preciso tanta violência?


O bando se entreolha, atônito. Mudo. O chefe levanta-se e, inflamado, prega:


- É verdade! Chega! Me entreguem suas armas. Agora! Vamos lá! A gente pode fazer melhor!


- Mas, Peneira, como a gente vai defender a boca sem armas?


- Dá-se um jeito, dá-se um jeito... O que não dá é pra continuar sacrificando vidas inocentes...

 Ah, Zecão, vai lá no alto e solta aquele moleque que a gente ia queimar... Não vai mais ter micro-ondas no meu morro...



CORTA.



Pronunciamento da Presidenta Dilma após as manifestações de junho de 2013:


- Brasileiras e brasileiros, acompanhamos com muita atenção os protestos. Ouvimos a voz do povo e concordamos plenamente com ela. De fato, o Senador Renan Calheiros não tem condições morais para presidir o Senado, de forma que vou tratar de expulsá-lo do cargo até o final do mês. O Feliciano, então, nem se fala, é um cretino escroto e podem considerá-lo carta fora do baralho. Corrupção eu também não aguento mais e já providenciei um decreto que vai exterminá-la completamente. Podem esquecer a Pec 37, já está previamente vetada. Políticos acusados de corrupção serão imediatamente presos, sem maiores investigações. E vou acabar com os partidos. Aliás, vou acabar com os políticos, que assim há menos risco de corrupção...


A TV começa a chiar, a imagem a tremer. Sai do ar.



FIM


quarta-feira, 29 de maio de 2013

a outra

O que eu vi nele? Ela. Se era bom o suficiente para Helena, seria, também, para mim. Ele me confidenciou que ela quase nunca o beijava. Então eu o beijei. Sem mais, nem menos. Na escada de serviço do prédio, onde estávamos a pretexto de fumar. Talvez seja o cheiro de cigarro?, sugeri. Não, ela disse que não gosta de beijar, respondeu, e beijou-me. Beijava bem, com intenção e intensidade. Não tinha mau hálito. A barba, muito espessa, arranhava a pele. Mas isso não era motivo para deixar de beijar. Talvez fosse, para Helena, pensava, enquanto ele me imprensava na parede e enfiava a mão por baixo do meu vestido. Passamos a nos encontrar duas vezes por semana. Minha pele vivia irritada, descamando. Um ano depois, quando Helena descobriu, ele quis mudar para a minha casa. Eu não aceitei. Minha pele ficou ótima.




Raul foi casado com Marina por quase 15 anos e está com Fernanda há 5. Elas são muito amigas. Mulheres civilizadas. Fortes, bem-sucedidas, bonitas. É de um homem como Raul que preciso. No começo, ele não me dá muita bola. Mas, sei esperar. Ficamos amigos. Sempre o encontro na hora do almoço. Trabalha no prédio ao lado do meu escritório. Fico na portaria, fingindo falar ao telefone, até vê-lo passar. Quase sempre dá certo. É um homem de rotina. Fala muito de Fernanda. Eu ouço com atenção. Espero. Sempre vale a pena. Em alguns meses, a crise chega. Fernanda não gosta de rotina. Eu gosto. Às segundas e quartas, almoçamos no motel. Às terças e quintas, Raul almoça com os amigos e eu no escritório. Às sextas, emendamos um almoço tardio com uma happy hour e depois transamos no meu apartamento. 



Seis meses depois, Raul aparece na minha casa, no sábado, carregando uma mala. Contou tudo para Fernanda e foi embora. Eu o mando para um hotel. Ele não compreende, mas vai. No domingo, Marina me procura, furiosa. Qual é o seu problema?, grita. Ela ainda é muito bonita. Eu a convido para entrar. Ofereço uma bebida. Espero que se acalme. Podemos ser amigas. Eu não tenho problema, tenho método. 


foto: Marcelo Huet Bacellar