terça-feira, 15 de novembro de 2011

O CARRASCO 19


         Luisa entrou em trabalho de parto numa sexta-feira à tarde. Não dava para negar que, embora aquela criança estivesse vindo ao mundo cerca de uma década antes do que seria recomendável, ao menos havia escolhido bem o dia da semana e o horário, de forma a causar o mínimo de transtornos à rotina da família. Antonio estava em casa com as filhas e, após cronometrar por algumas horas a evolução das contrações, decidiu que era hora de ir para a maternidade. Avisou Vera, que estava no escritório, para que fosse ao seu encontro.

 
        Quando Vera chegou à maternidade, Luisa já estava sendo levada para a sala de parto. Não parou para pensar. Apenas assumiu seu posto ao lado da filha, que precisava de seu apoio. Antonio ficou esperando do lado de fora, pois "não tinha estômago para essas coisas". No fundo, ainda era o mesmo, pensou. Ela também não tinha estômago para aquilo, jamais imaginou que precisaria. Suas filhas nasceram de cesariana, porque o médico achava mais prático e menos sofrido, e ela ficou feliz em concordar. Agora via Luisa chorando, berrando e suando, agarrada à sua mão, e sentia o coração apertado de impotência e culpa.

 
        Quando, finalmente, o médico tirou o bebê, caiu em prantos. Sequer conseguiu responder quando o pediatra lhe perguntou se queria cortar o cordão umbilical. Claro que não! Ela não chorava em genuína manifestação de êxtase diante do milagre da vida. Sua vontade era enfiar aquela criança de volta no ventre da filha e deixá-la lá por alguns anos. Mas, não era hora para devaneios. Aquele bebê vermelho, quase roxo, pelo qual sentia um afeto melancólico, já chegava ao mundo carregando um fardo de culpa grande demais para qualquer adulto. Faria de tudo para aliviá-lo e trazer para si toda aquela culpa, que, no fundo, era somente dela. Olhou para a filha, que agora ria, um riso um pouco nervoso, enquanto a enfermeira se aproximava com o bebê enrolado em uma manta.

 
        - Pode segurar, mamãe, é um menino lindo e forte - disse a enfermeira, docemente, para Luísa.

 
        Sem fazer qualquer menção de pegar o embrulho que a enfermeira lhe oferecia, Luisa lançou um olhar suplicante em direção à mãe.

 
        - Acho que não tenho forças - disse, constrangida, para a enfermeira - Leva ele pra vovó.

 
        Vera acudiu prontamente, quase correndo para pegar o bebê dos braços da enfermeira, que sequer tentava disfarçar a expressão de reprovação. Precisava evitar que o bebê sentisse a rejeição que emanava de Luísa. Ele não merecia sofrer, sua filha tampouco. Tomou o menino das mãos assépticas da enfermeira e tentou transmitir-lhe todo o calor maternal que tinha desenvolvido ao longo das décadas. A bem da verdade, a criaturinha não parecia sentir muita diferença entre a sustentação funcional da enfermeira e o colo caloroso da avó. Por algum tempo, permaneceu quieta, alienada, como se ainda estivesse no útero materno.

 
        Enquanto isso, o médico explicava a Luísa que ela deveria amamentá-lo o quanto antes. Que seria bom para o bebê e também para ela, pois as contrações provocadas pela sucção da criança, ajudariam na sua recuperação. Diante da resistência de Luísa, que chegou a chorar, dizendo que estava cansada, que não tinha forças para segurar o filho, Toninho foi mandado para o berçário e Luisa para o quarto, sempre acompanhada da mãe.

 
        No caminho, encontraram Antonio, que, após ver o neto, que acabara de passar, era o retrato da própria felicidade:

 
        - Parabéns, filhinha, parabéns! – emocionava-se, parecendo não perceber que a filha, deitada na maca, tinha o olhar inerte, perdido sob um rio de lágrimas que escorriam serena e incessantemente pelo seu rosto.

 
        Enquanto a enfermeira e Vera ajudavam Luisa a acomodar-se na cama, Antônio começou a telefonar para amigos e parentes. Repetia as mesmas informações a cada nova ligação, com o mesmo entusiasmo. A cada interlocutor, renovava-se seu orgulho. É um menino! Três quilos! Parto normal! Antonio, igual ao avô! Luísa está ótima!

 
        Sentada ao lado da filha, do outro lado do quarto, Vera sentia gratidão pela alegaria do marido, por mais despropositada que fosse. Afinal, se alguém estava tão radiante com o nascimento daquela criança, as coisas não deviam ser tão sombrias quanto lhe pareciam. A própria Luísa parecia estar se animando com o falatório do pai. Quando Antônio terminou os telefonemas, até concordou em mandar trazer Toninho e tentar amamentá-lo.

 
        Antes do bebê, todavia, chegaram Isabel e D. Cristina, mãe de Vera. A menina trazia flores e bombons para a irmã, obviamente por instrução da avó, que tentava agir como se achasse normal uma adolescente ter um filho.

 
        - Cadê o meu sobrinho? - perguntou Isabel, enquanto abria a caixa de bombons que tinha trazido para Luisa e, antes mesmo de oferecer a qualquer dos presentes, enfiava o primeiro na boca.

 
        - Minha filha, pelo menos oferece pros outros... - repreendeu Vera, por puro hábito, já que a educação de Isabel, naquele momento, era a última de suas preocupações, emendando – A enfermeira já foi buscar o Toninho.

 
        - É uma bela homenagem ao seu pai, dar o nome dele ao seu filho - afirmou D. Cristina para Luísa e, virando-se para Antônio, concluiu, com um quase imperceptível toque de ironia - Você deve estar muito orgulhoso!

 
        Sem perceber qualquer maldade no comentário da sogra, Antonio respondeu, entusiasmado - É, Cristina, realmente é uma honra, ainda mais em se tratando de um meninão forte e saudável como o meu neto, você precisa vê-lo... Ó, falando nele, olha quem vem aí...

 
        A enfermeira entrou carregando Toninho e foi imediatamente cercada por D.Cristina, Luísa e Antônio. A bisavó se aprumou, na clara intenção de acolher o bebê no seu colo, mas Antônio foi mais rápido. Pegou o neto um tanto desajeitadamente, o que fez com que se pusesse a chorar.

 
        - Ele está com fome – explicou, como se já soubesse adivinhar as necessidades do neto - Agora ele vai mamar. – afirmou, possuído daquela recente autoridade, à qual Vera ainda não se acostumara.

 
        Levou o bebê até a cama de Luisa que, dessa vez, não teve escapatória. Tomou Toninho nos braços e, meio sem jeito, tentou levá-lo ao peito. Vera se aproximou para ajudar. A criança não parava de chorar.

 


 


 

terça-feira, 8 de novembro de 2011

AGENTE TEM TUDO HAVER


Muita gente desconfia dos relacionamentos surgidos através da internet. Afinal, a rede está cheia de tarados e estelionatários escondidos atrás de seus computadores, prontos para envolver e atacar presas ingênuas e vulneráveis, especialmente crianças, adolescentes e mulheres carentes. Sem falar nas pessoas que se apresentam sob fotos falsas ou antigas, inventam profissões, escondem o verdadeiro estado civil, etc.
Em compensação, há outros aspectos muito mais dificeis de disfarçar online. O mais importante deles é o português... Afinal, num relacionamento ao vivo e a cores, é mais fácil não perceber, ignorar ou tentar acreditar que foi um lapso único, quando aquele deus grego solta um "pra mim fazer". Na rede, também fica muito mais evidente eventual incompatibilidade de gostos musicais, literários e até de senso de humor. Dificilmente aquela gata gostosérrima vai revelar que seu autor favorito é Paulo Coelho (do qual ela, na verdade, só leu um livro), na pista de dança de uma boate. Às vezes, pode demorar semanas até aquele sujeito tão gentil e educado, que abre a porta do carro e manda flores, revelar traços misóginos.
Mas, na internet, uma rápida análise de um perfil do facebook, por exemplo, já permite uma avaliação eliminatória rápida. Tá tudo lá: religião, citações e curtições. E, mais importante, a imagem que a pessoa faz de si mesma ou a que quer passar. Há quem não revele o rosto ou qualquer informação a não ser para os "amigos". Outros expõem detalhes constrangedores de sua intimidade ao público. E os personagens? Fotografias atléticas, de roupa de banho; ou misteriosas, de apenas um canto da boca. Citações orientais misturadas com auto-ajuda barata, filosofia alemã, música barroca e grifes francesas. Quem sou eu?, o perfil parece gritar. Isso tudo pode ser um belo balde d'água fria no começo de uma amizade virtual. Se rolar uma troca de mensagens, então, nem se fala... Não há ilusão ou tesão que resistam a um comentário como "agente tem tudo haver". Ainda mais quando vem de alguém de classe média alta, que estudou a vida toda em escola particular, de "nível superior", que faz piada com os erros de português do Lula. E, pior ainda, se aparecer, do nada, na tela do seu computador, num desses chats que você não sabe controlar.
Em compensação, quando as citações são interessantes, as piadas boas, os links musicais agradam e o português é correto, basta torcer pra que a foto e as informações sejam verdadeiras e marcar o encontro em um local público, avisando alguém conhecido, porque, sabe como é, tem uns tarados e estelionatários encantadores soltos por aí.
Um beijo no coração!