domingo, 29 de maio de 2011

O CARRASCO - 7

 Quando saiu à rua, o sol do meio-dia bateu-lhe direto nos olhos, cegando-o por alguns instantes. À luz do dia, o que havia acontecido não lhe parecia real. As horas passadas dentro daquele caixote de cimento e vidro fumê, iluminado com luzes fluorescentes, tinham ficado distantes, irreais. Aquilo tudo não podia ser verdade: o homem que matou friamente quatro pessoas não podia ser ele. Tinha que esquecer. Não dava pra conviver com a aquela memória. E agora, o que faria? Na proposta, não ia nem pensar... Mas precisava decidir o que fazer, para onde ir, naquele momento. Era cedo para ir para casa. Se voltasse já, teria que inventar desculpas. Mas, talvez fosse melhor. Ficar perambulando pela rua não lhe faria bem algum. Precisava se recolher ao seu lar, encontrar sua realidade, seu cotidiano, sua família. Só assim conseguiria afastar da memória a manhã de horror que acabara de viver.

Chegou em casa e foi para o quarto, sem falar com ninguém. Sua mulher só voltaria à noite. Isabel só chegaria do colégio à tardinha e Luísa estava trancada no quarto, falando ao telefone, e nem o ouviu entrar. Aliás, teve a impressão de ouvir um som de choro quando passou pela sua porta... Devia ser só impressão ou, quem sabe, briga com o namorado. De qualquer jeito, não estava com cabeça para conversar com ela. Depois que relaxasse um pouco, veria o que estava se passando. Será que tinha alguma coisa a ver com o assunto que queria falar com ele? Seria grave? Bobagem... Adolescentes choram à toa. Tratou de deitar-se e tentar dar uma cochilada.

Acordou, horas mais tarde, suando frio. Teve pesadelos horríveis, dos quais não se lembrava. Ficou um pouco quieto na cama, olhando para o teto escuro e concentrando-se nos sons que vinham da sala. Ouviu uns soluços, que pareciam de Luisa, e também a voz de Vera. O que teria acontecido para sua filha estar chorando até agora? Ou seria Isabel, ou mesmo Vera? Será que estavam todas chorando? Teriam descoberto que ele era um assassino? Queria ir até lá, ver o que estava acontecendo, mas, mesmo sem ter a mais vaga noção do problema, já se sentia culpado. A curiosidade e a preocupação acabaram por vencer a culpa. Levantou-se e foi até a sala.

A cena era dramática: Vera, sentada no sofá, e Luísa, deitada no seu colo, aos prantos. Sua mulher também estava com cara de quem tinha chorado... Tomaram um susto quando o viram e tentaram se recompor.

- O que você estava fazendo aí? - perguntou Vera, agressiva.

Era só o que faltava, tratava-o como a um intruso.

- Eu saí mais cedo do trabalho porque não estava passando bem, mas, eu é que pergunto: O que está acontecendo aqui? – contra-atacou.

Luísa, que repentinamente havia parado de chorar, empinou-se no sofá e, com um ar controlado, respondeu:

- Eu estou com um problema sério. Era sobre isso que precisava conversar com você.

- Então fala logo, menina, você quer que eu tenha um enfarto? Fala logo o que é; eu não sou adivinho. Aliás, eu sou sempre o último a saber das coisas nesta casa – reclamou, impaciente. Quando percebeu seu descontrole, já era tarde demais: Luisa desatara a chorar novamente, abraçada à mãe, que tentava acalmá-la.

Vendo que seria impossível continuar a conversa naquele tom, sentou-se e respirou fundo antes de continuar:

- Desculpe, minha filha, é que eu tive um dia muito difícil. Vai passar uma água no rosto pra ver se você se acalma, assim nós podemos conversar.

Enquanto Luísa estava no banheiro, tentou extrair alguma informação de sua mulher, mas Vera fechou-se em copas, preferia deixar que a filha contasse o problema à sua maneira, no seu tempo. Esforçou-se para manter a calma. Sua vontade era gritar e sacudir as duas, até que lhe contassem a razão do drama. Sua cota de suspense já se esgotara. Seus nervos estavam estropiados e sua paciência por um fio...

Luísa voltou do banheiro e sentou-se no sofá, bem em frente à poltrona onde o pai a esperava:

- Pai, é o seguinte: Vou falar logo, sem rodeios. Estou grávida.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

O CARRASCO - 6

- Com licença, podemos preparar o próximo? - perguntou o guarda, cansado de esperar por uma iniciativa de Antônio.

- O quê? Ah, claro - respondeu Antônio, distraído, e, quando o guarda já ia saindo, perguntou – Escuta... Só uma coisa... Aquela mulher que foi levada agora... Você sabe se ela tinha filhos?

- Não sei, não, senhor, mas eu posso perguntar pro pessoal lá da carceragem. Lá eles têm mais contato com os condenados...

- Será que você poderia me fazer esse favor, antes de começar a preparar o próximo? – pediu Antônio, folheando os relatórios que tinha em mãos, fingindo concentração.

- O senhor é que sabe, eu vou dar um pulinho lá e já volto - respondeu o guarda, saindo desconfiado.

Antônio aproveitou para examinar melhor a ficha da mulher. Tinha 45 anos. Bom, talvez não tivesse filhos pequenos... Assassinara 5 pessoas, sendo 3 crianças. Não havia atenuantes. Com ou sem filhos, essa mulher era uma assassina. Mas, não havia jeito, a imagem das crianças órfãs não lhe saía da cabeça...

Finalmente, o guarda voltou com notícias:

- Olha, o pessoal da carceragem disse que ela não deixou filhos, não. Parece que comentou de um, que ajudava ela, mas que morreu num tiroteio com a polícia, há coisa de dois anos. Disse que foi um desgosto tão grande, que nem se importava mais de morrer...

- Ah, muito obrigado. Era só isso que eu queria saber. Pode preparar o próximo, por favor - pediu Antônio, aliviado.

Tratava-se, então, de uma família de criminosos. É, não tinha motivos para sentir-se culpado. Estava executando pessoas da pior espécie. Era como se fosse um médico social, extirpando um câncer do seio da sociedade. Era justo e até natural que se sentisse realizado em cumprir sua missão. E não custava lembrar que não estava ali por opção.

Foi com esses pensamentos que partiu para o extermínio de sua derradeira vítima. E que prazer sentiu... Logo na primeira descarga de 2000 volts, assustou-se ao constatar que a visão do marginal - o corpo contraindo-se em espasmos provocados pela corrente elétrica - lhe provocou uma ereção. Havia algo de erótico na agonia do sujeito. O homem parecia estar tendo orgasmos múltiplos, de intensidades variadas. O próprio Antônio estava a ponto de gozar quando, para sua frustração, teve que interromper as descargas. Já havia dado cabo do criminoso. Se continuasse, iria transformá-lo em churrasco, como havia advertido o coronel.

Resignado, chamou o médico e retirou-se assim que este confirmou o óbito. No corredor, perguntou ao guarda onde ficava o banheiro. Demorou um pouco para conseguir urinar, ainda estava um pouco excitado. Depois, lavou longamente as mãos e o rosto e saiu em direção à sala do coronel Cruz.

- Com licença, o senhor está muito ocupado? - perguntou, pela porta entreaberta.

- Imagine! Por favor, entre - exclamou o coronel, abrindo um largo sorriso e indicando expansivamente a cadeira colocada diante de sua mesa - Sente-se aí.

- Bom, não quero incomodar - explicou Antônio, sentando-se timidamente - Só vim tomar aquele cafezinho que o senhor tão gentilmente ofereceu.

- Ora, o senhor me dá um grande prazer. Sabe, eu fico muito sozinho aqui, sinto falta de uma conversa.

Era um sujeito simpático esse coronel. Um tipo franco, sem papas na língua. Em pouco tempo, Antônio estava completamente à vontade. O coronel mandou trazer café e biscoitos, que Antônio comeu enquanto conversavam animadamente. O militar elogiou muito a sua atuação, diferente da de alguns mariquinhas, que passavam mal, choravam, desmaiavam, e largavam o serviço pela metade. Isso sem falar nas mulheres... Essas, raramente aceitavam a convocação e, quando aceitavam, era um deus-nos-acuda. Mas, isso era natural, o serviço não era próprio para elas. Por essas e outras é que o coronel Cruz não concordava com o método de arregimentação de carrascos. Aliás, considerava o termo “carrasco” muito forte... Coisa da imprensa, que acabou pegando... De qualquer jeito, achava que seria muito melhor se o governo procurasse contratar um pessoal efetivo para o trabalho. Não seria tão dispendioso e pouparia tempo, já que não seria necessário explicar o método a cada novo convocado. O coronel falava com genuína empolgação sobre o tema:

- A propósito, estou trabalhando num projeto que, inclusive, já está tramitando no Legislativo, que propõe essas e outras modificações. O senhor mesmo poderia... Não, não, deixa pra lá...- desistiu o coronel, deixando um enorme suspense no ar.

Ansioso, Antônio perguntou:
 
- Eu poderia o quê? Por favor, fale.

- O senhor é funcionário do estado, não é?
 
- Sou sim, por quê?
 
- É porque... Nada não, bobagem minha. O senhor não se interessaria.

- Ora, por favor, fale logo, acabe com esse mistério - insistiu Antônio, inexplicavelmente sentindo que poderia estar diante da chance de sua vida, embora sequer imaginasse o que o coronel estava a ponto de propor - Como posso saber se me interessa, se o senhor não fala o que é?

- É uma idéia que me ocorreu agora. O senhor, como funcionário público, poderia ser cedido, transferido para outro departamento, sem que isso representasse gasto adicional para o governo. Ou seja, o senhor poderia ser... mas que loucura a minha. O senhor, com certeza, é mais útil no seu serviço e, só porque se saiu bem hoje, não quer dizer que preferiria trabalhar aqui.

Por essa Antônio não esperava:

- Pois é, acho que não. Pra dizer a verdade, não sei. O senhor me pegou desprevenido.

No fundo, bem que gostava da idéia, mas não tinha coragem de admitir. As coisas estavam acontecendo muito rápido. Temia que fugissem ao seu controle.

- Mas é claro que o senhor não sabe - afirmou o coronel - Precisa de um tempo para pensar, não é? Pois tome o tempo que quiser. Pense bem, há uma série de vantagens, a começar pela carga horária do trabalho. Além disso, o senhor estará prestando um valioso serviço à sociedade... Oficial de cumprimento de penas terminativas de vida. Esse é o nome do cargo que eu propus no projeto que está tramitando... Soa bem, não é mesmo?

- Soa. Soa muito bem. – concordou Antônio, grato pela oportunidade de poder responder alguma coisa com convicção e sem saber o que dizer da proposta de trabalho.


O coronel levantou-se e saiu de trás de sua mesa. Tirou do bolso do paletó um cartão, que estendeu a Antônio, dizendo:

- O senhor pense bem, avalie os prós e os contras e, quando chegar a uma conclusão, me avise. Seria ótimo tê-lo em minha equipe.

Antônio pegou o cartão e, incapaz de articular uma resposta, ergueu-se da cadeira e apertou a mão que o coronel lhe oferecia. Despediram-se assim: o militar confiante na decisão de Antônio - que, fosse qual fosse, seria a mais acertada - deu-lhe uns tapinhas nas costas e reiterou o prazer que fora conhecê-lo; Antônio balbuciou uma resposta, concordando em telefonar logo que decidisse, despediu-se e saiu da sala completamente desorientado.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

O CARRASCO - 5

CONTINUAÇÃO. (capítulos anteriores no link à direita)


             - Pronto, podemos começar. – disse o coronel, parecendo satisfeito com o trabalho dos guardas que deixavam a sala.

             - Iniciamos com uma descarga de 2000 volts, por uns seis segundos. Pode acionar o primeiro botão. Fica de olho no cronômetro. – orientou.

             Antônio tentava seguir os comandos sem pensar. Não dava. Então tentou se concentrar nas crianças. Era por elas que estava fazendo aquilo. Para que ninguém voltasse a lhes fazer mal.

             - Tá certo assim? Já chega? – perguntou.

             - Tá. Agora reduz pra 500 volts por um minuto.

             Foi seguindo as instruções. Podia ver o vulto do condenado sacudindo-se espasmodicamente na cadeira, em intensidade proporcional à da descarga. 1000 volts por 10 segundos. Mais um minuto de 500 volts e, para finalizar, mais um pouquinho de 2000 volts. A sala toda foi tomada por um cheiro de queimado.

             - Muito bem, acho que você já pegou a coisa. - disse o coronel - Esse cheiro é que é extremamente desagradável. Cadê o “bom ar”?

             O coronel pegou o spray e saiu borrifando pela sala.

             - Agora é só chamar o médico pra passar o atestado de óbito – concluiu e, virando-se para Antônio, pediu - Aperta essa campainha branca, por favor.

             Enquanto aguardavam a chegada do médico, Antônio procurou recapitular os últimos acontecimentos e analisar o impacto que lhe tinham causado. Acabara de matar um homem, mas não havia culpa, não se sentia um assassino. Assassino era o condenado, ele mesmo havia traçado seu destino. Antônio apenas cumprira seu dever. Sentia alívio e, no fundo, uma ponta de orgulho.

             O médico examinou rapidamente o corpo e, em seguida, chamou dois guardas que o colocaram sobre uma maca e o levaram embora. Na saída, passaram bem ao lado de Antônio, que finalmente pôde ver melhor o rosto do condenado. Parecia, agora, um homem normal. Tinha a face coberta de suor e do nariz escorria um filete de sangue. Por que não o punham logo num daqueles sacos pretos, próprios para defuntos? Como se tivesse lido seus pensamentos, o coronel explicou que o morto seria levado à sala ao lado, onde seria preparado para ser transferido para o hospital, no 2º andar. Lá, seus órgãos seriam aproveitados para transplantes. Portanto, não havia tempo a perder.

             - Que interessante. Quer dizer que até um monstro desses, antes de morrer, tem um momento de bondade, em que decide ajudar o próximo? - comentou Antônio.

             - Nem sempre é bem assim... Mas dispomos de meios para persuadi-los a colaborar - explicou o coronel, com um olhar de cumplicidade.

             Já não se espantava com nada. Quem era ele para questionar os métodos do governo? Tá bem que era uma grande sacanagem... Não havia mais direitos humanos! Mas, por outro lado, seriam humanos esses criminosos? No final das contas, simpatizava com a idéia de aproveitar a morte dessa escória para ajudar as pessoas de bem. Ao mesmo tempo em que matavam um monstro, salvavam a vida de uma pessoa inocente, alguém que ainda podia ser útil à sociedade.

             O coronel mandou entrar o próximo condenado e despediu-se de Antônio.

             - Agora é com o senhor. Eu tenho uns assuntos para resolver. Qualquer problema, estarei na minha sala. Aliás, antes de ir embora, passe lá pra tomar um cafezinho... Ah! Aqui está o relatório dos crimes dos três próximos elementos. É sempre um incentivo... Até logo e bom trabalho.

             Enquanto os policiais preparavam o sujeito para a execução, Antônio aproveitou para examinar as fichas. Elas estavam numeradas conforme a ordem de execução, mas omitiam o nome do criminoso, indicando somente o número da identidade, o sexo e a idade, além, é claro, da descrição dos crimes cometidos.

             O próximo condenado era um motorista de táxi tarado, responsável por pelo menos 13 estupros, 4 deles seguidos de morte. Havia, ainda, uma empregada doméstica que assassinou o patrão, a patroa e os três filhos do casal, e depois tentou fugir com as jóias e os dólares da família. Para encerrar, seria executado um seqüestrador que, após algumas operações bem-sucedidas, matou o filho de um empresário que se recusou a pagar o resgate exigido.

             Finda a preparação do assassino, Antônio viu-se só com sua missão. Concentrou-se e deu início à primeira descarga. O homem estrebuchava na cadeira. Procurou desviar o olhar, fixando-os nos comandos e no relógio. Por um lado, não queria ver o sofrimento do calhorda... Afinal, apesar de tudo, era um ser humano... No entanto, uma curiosidade mórbida o instigava a dar umas espiadas. E, quanto mais olhava, mais queria ver. Era um caminho sem volta: tanto fazia ver só um pouquinho ou ver tudo. E Antônio queria ver tudo. Mas tinha medo. Poderia ficar traumatizado. Além disso, sabia que não era certo, não era politicamente correto querer acompanhar os detalhes da morte de alguém. Mas estava sozinho, ninguém saberia... Que horror, deveria estar chocado. Chocado. Chocado estava o cara da cadeira... Não! Não podia estar pensando essas bobagens numa hora dessas. Não era um sádico. Com certeza, tudo não passava de um mecanismo inconsciente de defesa de um homem extremamente sensível que, de outra forma, não teria estrutura para suportar uma tarefa tão sórdida. Era puro escapismo... Natural. Normal, até... Agora tinha que enfrentar a realidade e se concentrar nas descargas. Só faltava a última. Isso! Estava encerrado. Tinha matado mais um.

             Tudo transcorrendo sem falhas. Estava no pleno controle da situação. Que poder! Durante a terceira execução, começou a sentir um estranho prazer no desempenho de sua função. Um prazer que o Antônio que ele até então pensava ser jamais sentiria. Aquele Antônio já teria desmaiado ou pedido arrego. Era um covarde, o velho Antônio... Não teria coragem de ter prazer. Mas agora o poder o satisfazia. Um poder quase divino!

             Estava tomado de uma estranha euforia, quando viu o corpo de sua terceira vítima sendo levado da sala. De repente, foi como se acordasse de um pesadelo. Ou melhor, como se vivesse um pesadelo. A mulher deitada na maca era uma mulata de idade indecifrável, corpo roliço, que lhe dava um ar extremamente maternal. Olhava para ela - o rosto sofrido agora tranqüilo - e a via viva, cheia de energia, carregando duas crianças pequenas no colo e com mais meia-dúzia delas, em escadinha, agarradas à barra de sua saia. Aquela mulher, com certeza, era mãe. As crianças tinham perdido a mãe. Provavelmente, não tinham pai. Ele tinha matado a mãe das crianças. Não tinham mais ninguém. Perambulavam sozinhas pelas ruas, agarradas, agora, à maiorzinha. Choravam, os olhinhos vermelhos, os narizes sujos, as fraldas dos menores imundas. Tinham frio, fome e medo. Onde estariam as pobres crianças?

domingo, 8 de maio de 2011

O CARRASCO - 4


O prédio tinha guardas por todos os lados. Até dentro do elevador havia dois policiais armados com metralhadoras moderníssimas. Parecia coisa de traficante de drogas. Tá certo que tem que haver segurança, mas eles não precisavam ficar apontando as armas pra cara das pessoas.


Na sala 1, Antônio foi atendido por um senhor de seus 50 anos que, apesar do traje civil, tinha um quê de militar. Era ele o encarregado de instruir os convocados nas manhas da cadeira elétrica.


- Pois bem, senhor Santos, sente-se aí em frente ao quadro negro, que eu vou lhe dar umas explicações iniciais. Infelizmente o nosso vídeo está na manutenção. Uma projeção, com certeza, lhe daria uma noção mais abrangente do método. Mas, não há de ser nada, a coisa é bem simples e o senhor não vai ter a menor dificuldade em entender.


Antônio sentou-se e o homem, de pé, começou a exposição:


- Antes de mais nada, acho que esqueci de me apresentar. Eu sou o coronel Cruz. Bem, a coisa é a seguinte: o elemento tem raspados os cabelos da parte superior da cabeça e os pelos das pernas, onde serão fixados os eletrodos, mas, quanto a isso, o senhor não precisa se preocupar, temos funcionários especializados no serviço. Depois, o elemento é atado à cadeira por diversas correias, dessa forma - explicou, indicando com setas de giz amarelo os locais onde deveriam ficar as correias.


- Isso impede que, com a descarga elétrica, ele seja arremessado da cadeira – esclareceu o coronel, com a naturalidade de um comissário de bordo antes da decolagem de um avião, e continuou - Finalmente, iniciam-se as descargas elétricas. É aqui que o senhor entra em ação. As descargas devem ser dadas de forma a matar o elemento sem, contudo, carbonizá-lo... É que uma descarga muito forte elimina o elemento, mas provoca queimaduras e pode transformá-lo num verdadeiro churrasco...


Antônio sentiu o estômago dar voltas. Não deveria ter tomado café da manhã... Já não ouvia nada do que o coronel dizia. Ele continuava falando das descargas elétricas, quantas deviam ser, em que intensidade. Enquanto isso, as torradas de Antônio insistiam em voltar. Ele temia que, a qualquer momento, não conseguisse se controlar e vomitasse no meio da sala. Queria desmaiar. Quem sabe, se passasse muito mal, não seria dispensado. Tentou concentrar-se na “aula”.


- ...Como o senhor vê, é tudo muito simples. Qualquer dúvida, o senhor pode consultar esta apostila que explica tudo em detalhes. Hoje teremos quatro execuções. Eu vou supervisioná-lo na primeira e, depois, estarei na minha sala, onde o senhor poderá me encontrar caso tenha algum problema. Bom, vou levá-lo à sala de execuções. Por aqui, por gentileza.


Que remédio, tinha que acompanhá-lo... Seguiram até o fim do corredor. Pararam em frente a uma enorme porta, que parecia de cofre de banco, com um buraquinho no meio e uma placa de “Identifique-se” ao lado. O coronel Cruz enfiou o dedo indicador no buraco e a porta se abriu. Passaram, então, a um pequeno hall e pararam diante de mais uma porta. Desta vez o coronel digitou uma senha em um pequeno teclado e passou um cartão magnético na fechadura. Enquanto isso, duas câmaras de circuito interno de televisão vigiavam seus movimentos. Tudo moderníssimo. Entraram, finalmente, em um corredor cheio de guardas armados. O coronel apontou a primeira porta à direita, explicando ser a sua sala. Mais adiante, pararam na frente de um cartaz com um raio vermelho desenhado, como nos avisos de fios de alta tensão:


- Aqui estamos - disse o coronel Cruz, abrindo a porta e sinalizando para que Antônio entrasse. A sala era dividida por um vidro fumê: de um lado, estava a cadeira elétrica; de outro, a mesa com os controles e uma poltrona giratória para o carrasco. O coronel fez questão de mostrar os detalhes da cadeira, elogiando a sua qualidade e conforto.


- Esta cadeira é um modelo americano de 1985, muito eficiente. Como o senhor vê, ela é feita em material da melhor qualidade, toda acolchoada. Não sei pra quê, mas, sabe como é americano... Direitos humanos e essas coisas...- pareceu sorrir da própria observação, mas logo se recompôs e continuou - Enfim, o senhor não precisa se preocupar com a fase preparatória do processo. Um funcionário especializado é encarregado de fixar os eletrodos e atar o elemento à cadeira. Vamos ver os controles.


Após uma rápida explicação, o coronel certificou-se de que Antônio estava bem acomodado na sua poltrona e mandou preparar o primeiro condenado.

- Esse primeiro sujeito é daqueles que dá gosto mandar pro inferno. O senhor já deve ter ouvido falar nesse caso. É aquele animal que invadiu um jardim de infância, amarrou as criancinhas numa árvore e estuprou e esfaqueou as professoras e a diretora na frente delas. Pra completar, ele arrancou os olhos da diretora e comeu com “ketchup”. Olha a cara do filho da puta – apontou o homem que vinha entrando, trazido por dois guardas.

Antônio não teve tempo de ver bem o rosto do condenado, mas os olhos eram os de um louco. É, tratava-se realmente de um caso perdido. Tinha que morrer. Do outro lado do vidro, enquanto os guardas atavam o criminoso à cadeira, de seu posto, só conseguia distinguir as silhuetas. Para seu alívio, a sala não tinha janelas e a iluminação era mínima. Respirou fundo e tentou se concentrar nas instruções do coronel. Afinal, talvez a coisa não fosse assim tão sórdida...


sexta-feira, 6 de maio de 2011

CONSUMIDORA RADIANTE DE FELICIDADE!!!

O FORRO NOVA DA MINHA BOTA IMOBILIZADORA CHEGOU!!!



Se você não entendeu do que eu estou falando, leia o post "Consumidora Feliz". Se já leu, pode ler os posts do "O Carrasco", tomando o cuidado de começar pelo 1 (link no alto, à direita). Se já leu também (e gostou...), sugiro que clique nos links à direita (embaixo do contador de visitantes) para comprar o meu livro "Tempos Férteis". Agora, se você já leu o meu livro, então está de parabéns!!! Talvez esteja na hora de escrever um comentário elogioso na Amazon ou na Cultura???? Brincadeirinha.... (que, como você sabe, tem sempre um fundo de verdade...:):). Muito obrigada por visitar o meu blog e domingo tem mais um capítulo do Carrasco, beijos, Beatriz.

P.S. - Reli este post e parece que eu estou me achando uma popstar... tô mesmo... é divertido esse negócio de blog :):) Aliás, tem uma estrelinha que pisca no meio do mar, ao lado da África, num lugar que o ignorante do programa não reconhece (diz que é "unknown"). Acho que é em São Tomé e Príncipe!!! Creio que não conheço ninguém que more lá, mas o programa diz que tem OITO leitores lá!!! Se você é um deles, mate a minha curiosidade e me diga como chegou ao meu blog...:).

quarta-feira, 4 de maio de 2011

CONSUMIDORA FELIZ

Para aqueles que não vêm acompanhando a minha saga no FB, cabe uma pequena introdução:

Parei de fumar há 3 meses, com pequeno auxílio de forte medicamento psiquiátrico e muita determinação, que incluiu uma tentativa de mudança total de personalidade (talvez já fosse efeito do remédio...). Então, eu que nunca fui chegada aos esportes (exceto o levantamento de copos e o manejo de talheres) resolvi virar uma ironwoman. Sabe como é, aquela história de que o exercício leva à produção de endorfinas, gerando uma sensação de prazer incrível (até hoje o único prazer que o exercício me proporcionou foi um alívio imenso quando acaba!), acelera o metabolismo e facilita horrores o processo de se livrar da dependência... 

Eu já caminhava (esse esporte eu também domino perfeitamente: é só ir pondo um pé na frente do outro...), daí comecei a correr. Depois inventei férias esportivas em família: 5 dias andando de bicicleta na Umbria, em julho (entre 20 e 30 km por dia). Como tinha o pequeno detalhe de que eu não andava de bicicleta desde um passeio a Paquetá aos 17 anos, comprei uma bicicleta e arranjei um "personal biciclator" pra me ensinar a postura correta, utilização das trocentas marchas, etc. Ah, também comprei um capacete, um par de luvas e uma bermuda acolchoada nos fundilhos (que dá a impressão de estar #$$%@#%$). 
 
Comecei o treinamento Na Lagoa Rodrigo de Freitas e estava "me achando", até que, no dia 13 do mês passado, após testar a velocidade máxima do meu possante camelo no retão de Ipanema, percebi que tinha deixado meu filho e o "personal" comendo poeira. Desacelerei, desacelerei mais, esperei, e nada de eles aparecerem (aqui é preciso explicar que eu não podia simplesmente olhar para trás e ver onde eles estavam porque o meu equilíbrio não permite... eu cairia da bicicleta). Preocupada com a possibilidade de que algo tivesse acontecido com meu filho, decidi parar para poder olhar pra trás e, pretendendo evitar ter que desmontar da bicicleta (outro ponto em que tenho dificuldade), tive a esplêndida idéia de parar apoiando o pé direito na muretinha que fica entre a ciclovia e a grama... 
 
Não sei se calculei mal a hora de frear ou se simplesmente me desequilibrei na hora de pisar na muretinha, o fato é que dei um jeito de prender e virar o pé direito no raio da mureta e quase cair de cara na grama. Não cheguei a cair porque consegui sustentar o meu peso nas mãos (enluvadas, de forma que nem as machuquei). Em compensação, ferrei o pé (da próxima vez usarei armadura completa). Enfim, um acidente pra lá de besta (doeu pra #$%&#$#$, mas pensei que era apenas uma torção e fui de bicicleta pra casa, achando que, depois de um pouco de gelo e um banho, ainda iria tomar um chope previamente combinado com amigos), que, no entanto, foi suficiente para eu fraturar a base do 5º metatarso e romper ligamentos na área do tornozelo (eu sei, a frase ficou enorme... se não entendeu, comece de novo:):). Tratamento: 4 a 8 semanas usando uma bota imobilizadora do tipo Robocop (até para dormir). 

Como desgraça pouca é bobagem, o acidente ocorreu justamente às vésperas de uma mudança no trabalho, de forma que nem ao menos pude gozar os 30 dias de repouso que o médico prescreveu (suspeito que teria enlouquecido de vez se tivesse ficado em casa...). Bem, estou fugindo ao assunto (vocês devem estar achando que pirei mesmo, mas juro que vai ter uma questão de consumo ligando o post ao título...). Pois então comecei a usar a tal bota, que tem uma estrutura metálica, uma base de plástico e de borracha e um forro acolchoado de material bem quente, que fecha com velcro. É evidente que dormir com isso no pé é uma verdadeira tortura, ainda mais no calor que fazia na primeira semana... Mas o pior é que a coisa do "bota a bota, tira a bota" pra tomar banho, pôr gelo, etc., começou a levar ao esgarçamento do tecido do forro, coisa que foi me irritando, irritando, irritando.... Até que ontem à noite, sentada no mesmo local onde me encontro agora (com meu notebook, em frente à TV), resolvi tomar uma providência e, através do site do fabricante, enviei um e-mail de reclamação que copio abaixo:

Nome: Beatriz Cardoso Moreira Lima
Telefone: xxxxx
E-mail: xxxxx
Endereco: - CEP:
Cidade: - Estado:
Profissão: funcionária pública Empresa:

Mensagem: Quebrei a base do quinto metatarso no dia 13/04/11 e, tendo sido atendida na CORTREL, lá adquiri bota imobilizadora do tipo Robocop de fabricação de V.Sas., com indicação de uso pelo período mínimo de 4 semanas, podendo estender-se por até 8 semanas. Ocorre que desde o final da semana passada o forro da referida bota está rasgando no local onde se firma o velcro. Pesquisei sobre a possibilidade de aquisição de forro sobressalente (o que seria conveniente até para permitir a lavagem, já que devo usar a bota até para dormir...) e nada encontrei. Enfim, não me parece razoável que em apenas duas semanas de uso o forro da bota já esteja estragado e, mais absurdo ainda, que eu não possa adquirir um ou dois forros sobressalentes. Assim, venho solicitar uma solução e/ou explicação URGENTE de V.Sas. Atenciosamente, Beatriz.

 
Para minha surpresa, hoje de manhã recebi a seguinte resposta:

De: Sac - Rose [mailto:sac@salvape.com.br]
Enviada em: quarta-feira, 4 de maio de 2011 08:06
Para: Beatriz Cardoso Moreira Lima
Assunto: Re: .:: Contato · Salvapé ::.

Bom dia Sra. Beatriz!

Primeiramente gostaríamos de agradecer a iniciativa do contato e a preferência pelos produtos da linha SalvaPé.

A SalvaPé se desculpa pelo problema apresentado no forro e reitera que a filosofia da empresa é a busca constante pela satisfação do Consumidor.
Peço que me envie o código da bota que começa com 608, e endereço completo para que eu possa enviar um novo forro.

Nos colocamos à disposição para quaisquer esclarecimentos.

Atenciosamente

Rose Cristine
SalvaPé Produtos Ortopédicos Ltda.
Serviço de Apoio ao Consumidor
Tel: (11) 3346-4535
Fax: 0800 17 25 82
Site: www.salvape.com.br


Respondi, alegre:

Bom dia, Rose,
Obrigada pela pronta resposta. O modelo da minha bota é 608-24NG – tamanho médio. O meu endereço é xxxxxxxxx. Se for possível mandar por SEDEX, posso depositar o valor na conta que vocês indicarem. E reitero a sugestão para que vcs comercializem os forros avulsos. Obrigada, Beatriz.

E a resposta veio em seguida:

Sra. Beatriz!
Não será necessário efetuar depósito, será enviado sem custo algum para a Sra.
Atenciosamente
Rose Cristine

Gente, eu adoro os produtos Salvapé!!! Eu sei, eu sei... devia deixar para comemorar depois que o forro chegar... Mas me deixem curtir este raro momento de consumidora ouvida, respeitada e prestigiada... Quando o médico deixar, vou comprar uma tornozeleira Salvapé...:):):)
P.S. - O passeio de bicicleta na Umbria foi cancelado... Aliás, a bicicleta está aposentada por prazo indefinido :):).


domingo, 1 de maio de 2011

O CARRASCO - 3

Na manhã do dia 10, Antônio acordou um pouco mais cedo do que de costume. A verdade é que não pregou os olhos durante toda a noite. Quando, por volta das cinco da madrugada, finalmente conseguiu conciliar o sono, já estava praticamente na hora de acordar.

Às seis levantou-se e foi para o banho. Esqueceu de calçar as havaianas e tomou um choque ao tocar na torneira para temperar a água. Chuveiro elétrico era mesmo uma pobreza... Mas, pior era a lembrança que ele trazia da missão que estava prestes a cumprir.

Tomou café sozinho na cozinha e, antes de sair, foi acordar suas filhas que tinham escola às oito. Sentiu-se culpado ao beijar o rosto de Isabel, nove anos, pura inocência. Nada sabia, ainda, das maldades do mundo. Aliás, até que sabia bastante. Assistia todas as noites aos jornais da televisão e estava por dentro dos últimos homicídios e sequestros. Há cerca de um mês, surpreendera-o ao indagar sobre a origem da palavra “esquartejamento”. A seu ver, deveria chamar-se “esquinquejamento”, uma vez que somadas as partes a serem separadas do tronco, chega-se a cinco: dois braços, duas pernas e uma cabeça.

Luísa acompanhou-o até a porta.

- Pai, hoje, quando você voltar, eu preciso ter uma conversa com você.

- Claro, minha filha. Algum problema na escola?

Luísa tinha apenas 15 anos, mas já tinha um corpo de mulher feita. Ninguém diria que ainda não havia concluído a 8ª série. Isso o atordoava. Para ele, ainda era sua menininha.

- A gente conversa à noite. Tchau, pai.- abriu a porta para ele e despediu-se com um beijinho.

- Tá bom, filha. Até logo.

Não devia ser nada sério. Se não fosse um problema no colégio, podia ser um aumento na mesada. Desde que ela não viesse de novo com aquela história de viajar sozinha com o namorado... Não que ele fosse moralista. Não, ele sabia que a filha já era quase uma mulher e que era natural que ela iniciasse sua vida sexual. Mas estava namorando esse rapaz há pouco tempo, uns seis meses, e ele era, também, uma criança. Enfim, o que tivesse que acontecer, aconteceria, mas ele não ia patrocinar uma lua-de-mel pra dois pirralhos. Muito pelo contrário, faria tudo que estivesse ao seu alcance para retardar ao máximo a iniciação sexual da filha. Nem ela, nem aquele namoradinho, tinham maturidade suficiente. Temia que ela acabasse sofrendo. Vera, sua esposa, não concordava com ele. Tiveram uma briga horrível em que ela o acusou de não estar se importando à mínima com a felicidade da filha. Disse que seus argumentos não passavam de desculpas esfarrapadas para disfarçar o ciúme doentio que tinha de Luísa.

Quando deu por si, Antônio estava prestes a perder o ponto do ônibus. Puxou o sinal e saiu tropeçando, empurrando quem estivesse pelo caminho. Saltou em frente ao Fórum. O “corredor da morte” tupiniquim ficava no antigo Edifício Garagem Menezes Cortes, que já estava praticamente desativado há alguns anos, desde que foi proibido circular em carros particulares no centro da cidade. O Governo do Estado, então, em tempo recorde, reformou-o para abrigar o aparato necessário ao extermínio de criminosos.

Apresentou-se no portão principal, onde, do interior de uma guarita, um guarda verificou os seus documentos e a carta de convocação. A esperança é a última que morre... Quem sabe não aconteceria um daqueles típicos problemas burocráticos do serviço público e ele seria impedido de entrar? Ainda discutiria com o guarda, apontando para a carta e lembrando que não era nenhum moleque para ser tratado daquela maneira. Afinal, tinha um emprego e estava ali apenas cumprindo o seu dever de cidadão. O guarda continuaria implicando com algum detalhe irrelevante e ele acabaria perdendo a paciência e soltando um palavrão. Então, com certeza, o guarda não arredaria pé. Ele era a “autoridade” ali e, se disse que Antônio não poderia entrar, Antônio não ia entrar e ponto final. E, se continuasse a insistir naquele tom, seria enquadrado por “desacato a autoridade”.

O guarda deu uma olhadela na identidade de Antônio e devolveu-a em seguida, explicando:

- A carta fica comigo. O senhor deve dirigir-se ao 8° andar, sala 1. Tenha um bom dia.

Acionou o portão eletrônico e Antônio teve que entrar.


Foto: Beto Valente