domingo, 26 de junho de 2011

O CARRASCO 10

   Na manhã seguinte, tomou o café com a esposa  e  a filha.  Luísa ainda estava com os olhos inchados de tanto chorar, mas estava  bem  mais calma.  Aliás,  a calma inundava o  ambiente. Conversaram em voz baixa, sem nenhuma exaltação. Concordaram em não tomar nenhuma atitude precipitada, a gravidez de Luísa ainda estava na sexta semana. Ela já não tinha certeza se queria abortar. De qualquer jeito, os pais acatariam e apoiariam a sua decisão. Antônio sabia que não seria bem assim. Ele conseguiria convencer a filha a ter o bebê. Seria um menino: o filho que ele não teve.

 
    Quando, finalmente, Vera e Luísa saíram, aproveitou para telefonar para o coronel. O entusiasmo do militar ao ouvi-lo era contagiante. Marcaram um encontro para o almoço, em um restaurante discreto.

 
    Na repartição, Antônio não teve concentração para nada. Já não estava mais ali, pouco importava o que fizesse ou deixasse de fazer, talvez fosse seu último dia. Lúcio veio perguntar-lhe sobre a convocação do dia anterior:

 
    - E aí, Antônio, como foi ontem?

 
    - Eu preferia não falar nesse assunto, espero que você compreenda... – respondeu, fingindo ocupar-se de alguns papéis à sua frente;

 
    - Claro, me desculpe, acho que foi mesmo falta de tato minha perguntar assim... É que eu estava curioso... Mas, não se fala mais nisso. E a família? E Luísa? Já está uma moça, né? Bonita como a mãe... – insistiu o amigo, obviamente sedento por uma conversa que o mantivesse o mais distante possível do trabalho.

 
    Lucio tinha realmente o dom da inconveniência... Perguntava a esmo e sempre conseguia tocar nos assuntos que as pessoas mais queriam evitar. Tinha vontade de mandá-lo à merda – como já fizera algumas vezes – mas preferiu se controlar. Afinal, faltava pouco para que se visse definitivamente livre do interrogatório matinal do colega.

 
    - É verdade, mas tampouco quero conversar sobre isso. Aliás, acho que não estou pra muita conversa hoje. – respondeu, tentando, sem sucesso, não ser demasiado antipático.

 
    - OK, OK, quando o seu humor melhorar, me avisa.- Lucio encerrou a conversa, com ar magoado.

 
    Ao meio-dia em ponto, Antônio chegou ao restaurante escolhido pelo coronel Cruz. Era um pequeno restaurante natural, na Travessa do Ouvidor, um dos últimos "à la carte" em meio aos "quilos" que proliferavam no centro da cidade. Não era muito chegado à alimentação saudável, mas pouco importava a qualidade da refeição, qualquer sacrifício valeria a pena. O coronel já o aguardava, sentado a uma mesa ao fundo. Quando o avistou, levantou-se e cumprimentou-o efusivamente:

 
    - Ora viva, quem diria?! Eu tinha quase certeza de que o senhor aceitaria minha proposta, mas não pensei que fosse ser tão rápido.

 
    - Pois é, eu também não...- respondeu Antônio, um pouco constrangido com a recepção e tomando assento em frente ao coronel.

 
    - Mas, deixemos os negócios para depois. Garçom! O cardápio, por favor! – o coronel acenou para o garçom e depois, voltando-se para Antonio, continuou – As saladas são todas muito boas... e podem vir com carne do soja ... Mas tem também as massas, que são uma excelente pedida para os não vegetarianos... Eu acho que vou na salada de brotos com almôndegas de soja. É uma delícia!

 
    O garçom trouxe os cardápios. Antônio examinou o seu distraidamente e acabou escolhendo uma salada de macarrão com tomate e queijo. Era o que havia de mais inofensivo no menu, já que não envolvia verde nem soja.

 
    A comida foi servida em poucos minutos. As almôndegas do coronel exalavam um aroma esquisito, mas ele não cansava de elogiá-las. Discorreu longamente sobre os benefícios de uma alimentação vegetariana: para o indivíduo e para a sociedade como um todo. Cadáveres eram comida apropriada para abutres. Entrou em detalhes sobre digestão e decomposição, enquanto Antônio, grato por não estar diante de um bife, se esforçava para apreciar sua salada. Foi só na hora do cafezinho que o coronel tocou no assunto que os reunira:

 
    - Bom, pelo que eu entendi, o senhor decidiu aceitar a minha proposta.

 
    - É, em princípio, eu estou interessado, sim... Mas eu gostaria de saber mais detalhes.

 
    - A coisa é a seguinte: ainda não enviei meu projeto pelas vias oficiais, mas, informalmente, já conversei com meus superiores, que têm o poder de decisão, e eles me garantiram apoio total. Sugeriram que encontrasse um funcionário público estadual interessado no cargo, para fazer uma primeira experiência, que, se resultar positiva, será implementada definitivamente, não só aqui no Rio, mas em todo o país. É importante deixar bem claro que o senhor não correrá risco algum. Se, porventura, a minha idéia não der certo, o senhor voltará à sua lotação atual. O senhor terá essa garantia... Mas, eu tenho plena convicção de que não será necessário...

 
    - Ótimo, coronel, isso é muito tranqüilizador... Só que tem outra coisa que me preocupa... Eu não gostaria que ninguém viesse a saber da minha nova atividade...

 
    - Claro! Quanto a isso, o senhor pode ficar completamente descansado: a sua função, assim como a minha, será absolutamente sigilosa. Inclusive, o senhor não estará autorizado a revelá-la a ninguém, nem mesmo à sua família. Para todos os efeitos, o senhor será transferido para outro departamento, em missão sigilosa.

 
    - Maravilha, o senhor não imagina o alívio que essa informação me dá... Agora, outra coisa que eu gostaria de saber é se seria possível obter um aumento salarial. Não sei, uma gratificação ou algo assim. É que a vida está difícil e, pra completar, ontem fiquei sabendo que, em breve, teremos mais uma boca para alimentar na minha casa.

 
    - Meus parabéns! O senhor já tem filhos ou é o primeiro?

 
    - Eu tenho duas filhas, coronel, e já e mais do que o suficiente... A novidade é que a mais velha está grávida.

 
    - Meu Deus, não pensei que o senhor já tivesse idade pra ser avô! – exclamou o Cel. Cruz, genuinamente surpreso.

 
    - Nem eu, nem eu...- respondeu Antonio, balançando a cabeça, desanimadamente, mas com um leve sorriso nos lábios.

 
    - Que loucura... Mas, voltando ao assunto, eu compreendo perfeitamente a sua preocupação. Veja bem, num primeiro momento, o cargo que eu imaginei, "Oficial de Cumprimento de Penas Terminativas de Vida"... Me perdoe a falta de modéstia, mas acho perfeito esse título que eu bolei... Mas, enfim, num primeiro momento, o cargo ainda não existirá. Então, o senhor vai continuar ocupando o seu atual cargo efetivo. Mas, eu já pretendia mesmo oferecer um incentivo financeiro... Então requeri a concessão de um adicional de periculosidade e outro de insalubridade para a função. Eu não posso jurar que vão sair, mas a probabilidade de que consigamos ao menos um deles é grande. Afinal, a função é evidentemente estressante. É uma enorme carga emocional... E o perigo, embora a gente saiba que não há risco nenhum, acho que todo mundo que lida com criminosos perigosos deve receber um adicional de periculosidade... O perigo é inerente, se é que o senhor me entende...

 
    - Maravilha! O senhor pensa em tudo! Por mim, estou à sua disposição para começar quando o senhor achar melhor.

 
    - Ótimo, ótimo. Hoje mesmo vou tratar da sua requisição em regime de urgência. Entro em contato até o final da semana para que o senhor comece na próxima segunda-feira. Enquanto isso, sugiro que não comente nada na sua repartição.

 
    - Perfeito. Aliás, é melhor nós irmos andando, porque eu não quero levantar nenhuma suspeita com ausências mais demoradas que o normal.

 
    - É, vamos sim. Garçom! A conta, por favor!

segunda-feira, 20 de junho de 2011

O CARRASCO - 9

         Quando Antônio foi para o quarto, Vera já estava deitada, fingindo dormir. Ficou até tarde conversando com Luisa. Isabel, graças a Deus, fora dormir na casa de uma amiguinha. Assim, eles puderam conversar com calma. Tinha quase certeza de que conseguira convencer a filha a desistir do aborto. Agora precisava tentar fazer as pazes com Vera...

         Enquanto tomava uma chuveirada, procurou recapitular os acontecimentos do dia. O coronel, a cadeira elétrica, as execuções, a gravidez de Luisa, a manipulação de Vera, o aborto, o neto. No começo, sentiu aversão pelo que tinha feito, mas, conforme foi se lembrando das descargas elétricas, a mesma emoção que dele se apoderara nos últimos momentos voltou a tomá-lo. O poder, ele estava no comando. Dependiam dele a vida e a morte das pessoas. De manhã, matara; à noite, salvara. Tinha um papel de destaque na eterna luta entre o Bem e o Mal.

         Saiu do banho orgulhoso, sentindo-se um homem forte, a prova de sua virilidade em riste. Deitou-se na cama ao lado de Vera. Tentou abraçá-la, mas ela se esquivou. A resistência era natural... Noutros tempos, poderia sentir-se rejeitado e inseguro, mas agora sabia que acabaria vencendo. Afinal, era poderoso. Pela primeira vez na vida, sentia-se seguro, absoluto, um vencedor. Até hoje tinha sido um banana, um medíocre.

         Perdera a fortuna do pai por inexperiência e descaso. A verdade é que tinha sido educado para gastar, e não para ganhar. A morte do pai o surpreendera precocemente, quando não tinha ainda na vida maiores interesses do que sair para azarar umas gatas nos lugares da moda e esbanjar o dinheiro fácil da mesada. Nada sabia do mundo, não estava interessado. Então, quando se viu, aos 20 anos, herdeiro dos negócios do pai, assumiu como quem vai brincar de executivo. Jogou dinheiro fora, investindo em idéias mirabolantes, foi passado para trás por concorrentes, fornecedores e até por amigos. Sua mãe estava deprimida demais para perceber o que estava acontecendo e só acordou a tempo de salvar o suficiente para uma subsistência de classe média. Antonio custou a acreditar que o dinheiro do pai, que lhe parecia infinito, tinha acabado.

         Desde então, era um fracassado. Só não tinha sido pior porque se apaixonara por Vera aos 22 anos de idade, quando estava dando cabo dos últimos tostões da família. Ela era três anos mais velha e já estava encaminhada na vida, ganhando seu próprio sustento. Quando engravidou, acidentalmente, decidiu ter o filho, com ou sem a sua ajuda. Estava pronta para arcar com uma produção independente. No entanto, casaram-se. Foi um casamento sincero, por amor, do qual ele nunca se arrependeu. Vera foi o seu apoio. Graças a ela, ele concluiu o curso de Direito e estudou o suficiente para fazer o concurso que lhe rendeu o cargo público que ora ocupava. Não era o trabalho dos seus sonhos... Mas, quando é que tinha sonhado com trabalho? Enfim, amava sua mulher e era completamente dominado por ela. Isso nunca o incomodara muito. Até hoje.

         Hoje a sua vida estava começando a mudar. O primeiro dia do resto de sua vida. O clichê era perfeito para descrever o que sentia. Abraçou a mulher, que estava deitada de costas para ele, de forma que ela sentisse sua ereção. Vera resmungou qualquer coisa, mal-humorada, e se afastou. Antônio insistiu. Vera o empurrou. Segurou-a com força e enfiou a mão entre suas pernas. Ela virou-se e o encarou:

         - O que você tem? Enlouqueceu?? – perguntou, sarcástica.

         - Por quê? Precisa estar louco pra querer transar com a própria mulher? – retrucou, enquanto passava a perna por cima do quadril de Vera. O que normalmente o faria brochar, hoje, o estimulava.

         Se ela estava pensando que iria fazê-lo desistir, estava muito enganada. Certa vez a ouvira queixando-se a uma amiga... Dizia que sentia falta de um pouco de agressividade; que ele não tinha “pegada”... Já fazia tempo que desistira de entender as mulheres, era mais fácil atendê-las. Montou em Vera, penetrando-a bruscamente, enquanto enterrava o rosto no seu pescoço. Ela deu uns gritinhos, tentou se soltar, mas depois relaxou e se deixou dominar.

         Tiveram uma noite maravilhosa. Vera não disse nada, mas ele sabia que sua performance tinha sido espetacular. Estava completamente esgotado. Seus últimos pensamentos, antes de adormecer, foram sobre a proposta do coronel. De certa forma, aquela manhã tinha sido positiva. Aliás, tinha sido revigorante, excitante, emocionante. Era disso que ele precisava. Já estava cansado de ser um mero funcionário burocrático, um mosca morta, um frustrado. Queria poder, ação... É, não podia deixar escapar a oportunidade de dar uma reviravolta na sua vida. Telefonaria amanhã mesmo.

sábado, 4 de junho de 2011

O CARRASCO - 8


    Não podia ser. Uma criança não engravida. Estava tendo um pesadelo, mais um. Aquele dia não existia. Era pura imaginação. Ou seria castigo? O castigo mais rápido do oeste.

 
    - Como é que é? – perguntou, mais para ganhar tempo, pois tinha entendido perfeitamente.

 
    - Eu estou grávida, pai. – repetiu, Luisa, pacientemente, e logo acrescentou – Mas eu decidi abortar.

 
    Era só o que faltava! Quem aquela pirralha pensava que era, pra falar com ele daquele jeito? "Eu decidi abortar". Como podia sair decidindo coisas, sem nem ao menos ouvir sua opinião? Mas, pobrezinha, devia estar sofrendo. Tinha que manter a calma.

 
    Luisa fitava-o, aguardando ansiosa por sua reação. O que dizer? Ele nunca tinha preparado algo pra dizer nessa situação. Até já tinha pensado no risco de isso vir a acontecer, mas sempre afastou o pensamento, achando melhor nem pensar, para não atrair. Agora se arrependia. Se tivesse um discurso ensaiado, como o que tinha pronto para o dia em que descobrisse que alguma das filhas estava fumando maconha... Já que não tinha, não podia demonstrar insegurança. O melhor era ir por partes:

 
    - Bom, vamos com calma, você tem certeza?

 
    - Peguei o resultado do exame ontem à tarde - respondeu Luísa, um pouco mais serena.

 
    - E porque você só está me contando isso agora? - perguntou, indignado.

 
    Não dava pra entender como ele não tinha percebido nada antes. Tentava lembrar algum sinal, alguma coisa estranha, mas não lembrava de nada. Na verdade, nos últimos tempos ele estava preocupado demais com a tarefa daquela manhã para prestar atenção ao comportamento de sua família.

 
    - Eu precisava pensar. E, também, tinha que falar com o Marquinhos. - respondeu Luisa, com uma naturalidade que já o estava tirando do sério.

 
    Aliás, Vera também assistia à conversa sem demonstrar qualquer espanto. Parecia achar normal a atitude da filha. Com certeza, já estava sabendo de tudo desde o começo, desde a primeira vez da filha. E não lhe contara nada. Diria que não podia trair a confiança da filha, pois perderia a cumplicidade que tinham... Isso mesmo, elas eram cúmplices! E ele era um palhaço. Parecia que o assunto não lhe dizia respeito. Estava, apenas, sendo comunicado.

 
    - Ah, você precisava falar com o Marquinhos... Com certeza foi ele quem te apontou a saída brilhante do aborto - respondeu e, virando-se para Vera, continuou - E você está de acordo com tudo isso, não é? Tá vendo no que dá dar liberdade demais para crianças? Eu pensei que, pelo menos, você tivesse ensinado a sua filha a usar anticoncepcionais...

 
    - Chega, Antônio! Será que você não vê que só está piorando a situação? A última coisa que precisamos agora é do seu "eu disse, não disse?". Sua filha precisa de apoio e não de bronca – e, vendo que Luísa já começava a chorar de novo, Vera voltou-se para a filha, concluindo - E você, vê se pára de chorar, porque também não adianta nada...

 
    O.K., ele ia tentar agir civilizadamente, muito embora sua vontade fosse dar umas boas palmadas na filha e mandar dar uma surra naquele desgraçado daquele Marquinhos:

 
    - Você tem razão, Vera. - odiava essa frase, mas tinha aprendido a dizê-la em momentos cruciais, quando não podia se dar ao luxo de ter a mulher contra ele - Agora, Isabel, me explica como você foi engravidar. Eu acho que você sabe como evitar, não sabe? E, outra coisa, há quanto tempo você vem transando com esse rapaz?

 
    As lágrimas continuavam rolando pelas bochechas da menina, mas ela respondeu:

 
    - Foi só uma dia, foi na primeira vez. Eu ainda não tinha começado a tomar as pílulas que o ginecologista receitou pra mim. Já tinha até comprado, mas só ia começar no outro mês. Aí a gente usou camisinha. Acho que ela devia estar furada...

 
    Essa era demais, sua filha estava achando que ele era um idiota:

 
    - Furada! Você acha que eu sou débil mental? Se você dissesse uma coisa dessas há vinte anos atrás, eu até podia acreditar, mas, hoje em dia, camisinha não tem furo e só arrebenta se o cara não souber como põe, como esse seu namoradinho idiota...

 
    -Bom, eu mesma sou fruto de uma camisinha arrebentada, não sou? - disse-lhe a filha, com ar irônico.

 
    Quando é que sua mulher ia aprender a não contar tudo para as filhas? Lançou um olhar fulminante para Vera, que nada viu, pois olhava para o teto, a fim de evitá-lo..

 
    - Pois é, Luísa, só que isso aconteceu há mais de quinze anos, quando as camisinhas não tinham a qualidade que têm hoje.

 
    - Tá bom, pai, não sei de que adianta te contar isso, mas já que você insiste... A gente só tinha uma camisinha. Aí, da segunda vez, ele gozou fora, mas acho que alguma coisa deu errado.

 
    - Ha! Gozou fora! - não acreditava que estava tendo aquela conversa com a filha, a simples idéia de aquele Marquinhos gozar: fora, dentro ou em qualquer lugar próximo à sua filha, o deixava furioso - Você tem muita desenvoltura pra usar esse tipo de vocabulário com o seu próprio pai, mas é completamente ignorante. Ninguém nunca te ensinou que "gozar fora" não é seguro? Meu deus, eu pensei que ensinavam isso no colégio...

 
    - Foi você quem perguntou, e eu sei que não é seguro, eu sei que o cara pode errar a hora e...

 
    - Você não sabe porcaria nenhuma! É incrível, mas você não sabe nada. De que adiante essa porcaria dessa educação moderna? Você só aprendeu besteira sobre sexo. Não sabe que antes da ejaculação (é ejaculação que se diz, não "gozar") já pode haver esperma suficiente para engravidar a mulher? Mas agora você vai ter muito tempo para ler sobre o assunto, antes de fazer outra besteira, porque eu não vou admitir que você faça um aborto.

 
    Vera interrompeu:

 
    - Ora, Antônio, isso não...

 
    - Me deixa falar, tá? Garanto que você já teve muito tempo pra falar. Agora é a minha vez. Aborto é ilegal e, além disso, é imoral. Ainda mais nesse caso. Luísa, você engravidou por pura irresponsabilidade. Não é justo sacrificar, assassinar mesmo, um ser humano porque você foi irresponsável. Eu sei que você é muito nova, mas nós podemos ajudar a criar essa criança.

 
    Luísa estava atônita, as lágrimas rolando. Vera levantou-se e revidou, quase aos berros:

 
    - Eu não acredito, Antônio. Você, um defensor da pena de morte, preocupado com a vida de um embrião. Você devia se preocupar mais com a vida da sua filha.

 
    Antônio levantou-se, também, para enfrentar a mulher:

 
    - Um embrião inocente! Ele já tem vida, mas não tem culpa. Vocês querem aplicar a pena de morte para um bebê que não fez nada de errado e que não tem a menor chance de se defender.

 
    - Bebê! Ora, deixa de pieguice. É um embrião, um pontinho de nada. Melhor rejeitá-lo agora do que depois. Quem tem que saber se quer ou não o filho é a Luísa. No máximo, o Marquinhos.

 
    - Lindo, o Marquinhos! Cadê ele? Por que não está aqui, aquele imbecil?

 
    - A gente teve uma briga ontem. Eu falei que talvez eu quisesse ter o bebê e ele disse que, se eu fizesse uma loucura dessas, eu ia estragar a minha vida e a dele também - respondeu Luísa, olhando para o chão.

 
    - Tá vendo, Vera, ela quer ter o bebê! Ela só precisa do nosso apoio. Minha filha, eu sei que é uma responsabilidade muito grande, mas nós estamos aqui pra te ajudar. Você não vai querer viver com a culpa de um aborto.

 
    Luisa levantou-se e começou a andar de um lado para o outro.

 
    - Eu não sei, eu tô confusa. Eu sempre quis ter um filho, mas não tão cedo. Eu não quero estragar a minha vida. Eu não sei, não sei mesmo...

 
    Antônio foi abraçar a filha.

 
    - Pensa mais um pouco, é a vida de um ser humano que está em jogo - disse, olhando afetuosamente para a barriga da filha e acariciando-a.

 
    Vera saiu para o quarto, batendo a porta.

O CARRASCO – Capítulos 1 a 20


 

    CAPÍTULO 1

 
    O ano de 2007 deu lugar a uma ampla reforma do sistema penal brasileiro. Foi, finalmente, instituída a pena de morte, satisfazendo-se, assim, um velho anseio da sociedade, que, desde o fim do último milênio, vinha clamando por vingança. A Constituição de 1988 foi emendada a fim de permitir a deliberação sobre a pena de morte através de plebiscito. A própria emenda à Constituição só foi possível graças à nova interpretação que se deu ao seu artigo 60, segundo o qual não seria objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias fundamentais. De acordo com a nova interpretação doutrinária, no entanto, a pena de morte deixou de ser uma ameaça ao direito à vida para tornar-se um instrumento de defesa desse mesmo direito.

 
    Realizado o plebiscito, que registrou o menor número de abstenções da nossa história, venceram os defensores da pena de morte, que chegaram a 73% do eleitorado. O legislador deparou-se, então, com um novo problema: Qual seria o método de execução da pena, e, além disso, quem seriam os carrascos? A cadeira elétrica foi o método escolhido, a exemplo da prática adotada por nossos irmãos norte-americanos, que, inclusive, nos exportaram gratuitamente a sua tecnologia. Chegaram até mesmo a doar-nos algumas cadeiras de modelo ultrapassado para os seus padrões, mas, em perfeito estado de conservação.

 
    Foi na escolha dos carrascos que o legislador brasileiro deu asas à sua criatividade e demonstrou o seu estilo inovador. Levando em consideração que a esmagadora maioria da população votou a favor da adoção da pena capital, decidiu-se por uma solução econômica e democrática. Os carrascos seriam periodicamente convocados dentre os eleitores de 21 a 60 anos de idade, mais ou menos da mesma forma que eram convocados os mesários das eleições. O cidadão convocado seria dispensado do seu trabalho no dia em que fosse executar os praticantes de crimes hediondos. As execuções, no máximo cinco por carrasco, dar-se-iam na parte da manhã, após o que o cidadão receberia um lanchinho e seria dispensado pelo resto do dia.

 

 
    CAPÍTULO 2

 
    Foi assim que, no dia 3 de abril de 2008, o senhor Antônio Pereira dos Santos, 38 anos, casado, pai de duas filhas, funcionário burocrático de uma repartição do Estado, recebeu a convocação para servir à pátria no dia 10 do mesmo mês.

 
    O envelope chegou junto com a correspondência de sua casa. Apressado que estava, Antônio levou-o junto com extratos bancários, propagandas e contas para o trabalho, onde, depois de assinar o ponto e pendurar o paletó na cadeira, teria tempo de sobra para apreciar o seu conteúdo.

 
    Quando, enfim, se acomodou diante de sua mesa, foi logo abrindo o envelope timbrado do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Quem sabe não seria uma boa notícia: um aumento, um prêmio, uma promoção... Ao ler a convocação, empalideceu, começou a tremer e a suar frio, tamanha a descarga de adrenalina que a notícia lhe provocou. Não podia ser. Por que ele? Até hoje ninguém de suas relações tinha sido chamado a servir como carrasco: nenhum de seus colegas de repartição, amigo ou parente. Já ouvira falar de gente que tinha sido convocada, mas pessoas distantes, tipo primo do cunhado do amigo. É verdade que ele tinha votado a favor da pena de morte... Fez até mais que isso. Ele, que sempre fora um cidadão apolítico, pela primeira vez engajou-se em uma campanha, até boca-de-urna ele fez. Mas isso não queria dizer que estivesse disposto a participar pessoalmente da execução dos criminosos. Não, sua idéia não era essa.

 
    Imerso nesses pensamentos, custou a perceber a presença de Lúcio:

 
    - Antônio, o que houve? Você tá passando mal?

 
    Permaneceu com os olhos esbugalhados, fixos no papel que tinha nas mãos trêmulas. O suor lhe escorria pela face.

 
    - Alguma notícia? – perguntou o colega, esticando o pescoço para tentar ver o que estava escrito na carta.

 
    - Ahn, o quê? - ergueu os olhos vagamente na direção de Lúcio.

 
    - O que foi que aconteceu? Você tá branco como uma parede – insistiu o amigo.

 
    - É...Tô, né? Olha isso - Antônio estendeu a carta com uma das mãos enquanto com a outra procurava afrouxar o nó da gravata.

 
    Lúcio pegou o papel e tirou os óculos para enxergar melhor de perto:

 
    - Deixa eu ver...

 
    Após rápida leitura, dobrou cuidadosamente a carta e devolveu-a a Antônio:

 
    - É, isso pode acontecer com qualquer um... Coragem, homem! Afinal, pra acabar com esses filhos-da-puta,alguém tem que sujar as mãos e, mais dia, menos dia, todo homem de bem vai ser chamado a colaborar.

 
    - Eu sei, eu sei... Mas falar é muito fácil, você só está nessa calma toda porque não está na minha pele. – respondeu Antônio, aflito.

 
    Não era só a questão de matar que o preocupava... O que diria às pessoas? Deveria revelar a novidade à sua mulher, ferrenha opositora da pena de morte? Como explicaria a situação às suas filhas? E o que pensariam seus amigos? Enfim, todo mundo. Mesmo os que estavam de acordo com a execução de criminosos não deixariam de vê-lo com outros olhos, como uma espécie de assassino.

 
    - Escuta, Lúcio, não comenta isso com ninguém não, tá? Você entende, eu não quero chocar a minha família. Pode deixar, que eu não vou fugir da raia... Mas é melhor que isso fique só entre nós, ok.?

 
    - Claro, rapaz, não se preocupe, eu compreendo perfeitamente a sua situação. Você sabe que não é obrigado a tomar parte nisso, né? Há meios para se safar...- sugeriu o colega, solidário.

 
    - Não, De jeito nenhum, não sou um covarde. Não vou inventar problemas de saúde nem, muito menos, me declarar contrário à pena de morte. Seria muita humilhação. O que ia ter de neguinho me sacaneando não tá no gibi... A começar pela minha própria mulher! Não, eu vou até o fim. É o mais coerente, você não concorda?

 
    - Plenamente, plenamente. Eu agiria exatamente como você. Não que me agrade a idéia de matar uma pessoa, mas, lá na hora, eu pensaria no desgraçado que envenenou o meu dobermann e mandava ver.

 
    Lúcio tinha razão. Ele ia encarar aquela parada. Só não deixaria ninguém de sua família ficar sabendo.

 

 
    CAPÍTULO 3

 
    Na manhã do dia 10, Antônio acordou um pouco mais cedo do que de costume. A verdade é que não pregou os olhos durante toda a noite. Quando, por volta das cinco da madrugada, finalmente conseguiu conciliar o sono, já estava praticamente na hora de acordar.

 
    Às seis levantou-se e foi para o banho. Esqueceu de calçar as havaianas e tomou um choque ao tocar na torneira para temperar a água. Chuveiro elétrico era mesmo uma pobreza... Mas, pior era a lembrança que ele trazia da missão que estava prestes a cumprir.

 
    Tomou café sozinho na cozinha e, antes de sair, foi acordar suas filhas que tinham escola às oito. Sentiu-se culpado ao beijar o rosto de Isabel, nove anos, pura inocência. Nada sabia, ainda, das maldades do mundo. Aliás, até que sabia bastante. Assistia todas as noites aos jornais da televisão e estava por dentro dos últimos homicídios e sequestros. Há cerca de um mês, surpreendera-o ao indagar sobre a origem da palavra "esquartejamento". A seu ver, deveria chamar-se "esquinquejamento", uma vez que somadas as partes a serem separadas do tronco, chega-se a cinco: dois braços, duas pernas e uma cabeça.

 
    Luísa acompanhou-o até a porta.

 
    - Pai, hoje, quando você voltar, eu preciso ter uma conversa com você.

 
    - Claro, minha filha. Algum problema na escola?

 
    Luísa tinha apenas 15 anos, mas já tinha um corpo de mulher feita. Ninguém diria que ainda não havia concluído a 8ª série. Isso o atordoava. Para ele, ainda era sua menininha.

 
    - A gente conversa à noite. Tchau, pai.- abriu a porta para ele e despediu-se com um beijinho.

 
    - Tá bom, filha. Até logo.

 
    Não devia ser nada sério. Se não fosse um problema no colégio, podia ser um aumento na mesada. Desde que ela não viesse de novo com aquela história de viajar sozinha com o namorado... Não que ele fosse moralista. Não, ele sabia que a filha já era quase uma mulher e que era natural que ela iniciasse sua vida sexual. Mas estava namorando esse rapaz há pouco tempo, uns seis meses, e ele era, também, uma criança. Enfim, o que tivesse que acontecer, aconteceria, mas ele não ia patrocinar uma lua-de-mel pra dois pirralhos. Muito pelo contrário, faria tudo que estivesse ao seu alcance para retardar ao máximo a iniciação sexual da filha. Nem ela, nem aquele namoradinho, tinham maturidade suficiente. Temia que ela acabasse sofrendo. Vera, sua esposa, não concordava com ele. Tiveram uma briga horrível em que ela o acusou de não estar se importando à mínima com a felicidade da filha. Disse que seus argumentos não passavam de desculpas esfarrapadas para disfarçar o ciúme doentio que tinha de Luísa.

 
    Quando deu por si, Antônio estava prestes a perder o ponto do ônibus. Puxou o sinal e saiu tropeçando, empurrando quem estivesse pelo caminho. Saltou em frente ao Fórum. O "corredor da morte" tupiniquim ficava no antigo Edifício Garagem Menezes Cortes, que já estava praticamente desativado há alguns anos, desde que foi proibido circular em carros particulares no centro da cidade. O Governo do Estado, então, em tempo recorde, reformou-o para abrigar o aparato necessário ao extermínio de criminosos.

 
    Apresentou-se no portão principal, onde, do interior de uma guarita, um guarda verificou os seus documentos e a carta de convocação. A esperança é a última que morre... Quem sabe não aconteceria um daqueles típicos problemas burocráticos do serviço público e ele seria impedido de entrar? Ainda discutiria com o guarda, apontando para a carta e lembrando que não era nenhum moleque para ser tratado daquela maneira. Afinal, tinha um emprego e estava ali apenas cumprindo o seu dever de cidadão. O guarda continuaria implicando com algum detalhe irrelevante e ele acabaria perdendo a paciência e soltando um palavrão. Então, com certeza, o guarda não arredaria pé. Ele era a "autoridade" ali e, se disse que Antônio não poderia entrar, Antônio não ia entrar e ponto final. E, se continuasse a insistir naquele tom, seria enquadrado por "desacato a autoridade".

 
    O guarda deu uma olhadela na identidade de Antônio e devolveu-a em seguida, explicando:

 
    - A carta fica comigo. O senhor deve dirigir-se ao 8° andar, sala 1. Tenha um bom dia.

 
    Acionou o portão eletrônico e Antônio teve que entrar.

 

 
    CAPÍTULO 4

 
    O prédio tinha guardas por todos os lados. Até dentro do elevador havia dois policiais armados com metralhadoras moderníssimas. Parecia coisa de traficante de drogas. Tá certo que tem que haver segurança, mas eles não precisavam ficar apontando as armas pra cara das pessoas.

 
    Na sala 1, Antônio foi atendido por um senhor de seus 50 anos que, apesar do traje civil, tinha um quê de militar. Era ele o encarregado de instruir os convocados nas manhas da cadeira elétrica.

 
    - Pois bem, senhor Santos, sente-se aí em frente ao quadro negro, que eu vou lhe dar umas explicações iniciais. Infelizmente o nosso vídeo está na manutenção. Uma projeção, com certeza, lhe daria uma noção mais abrangente do método. Mas, não há de ser nada, a coisa é bem simples e o senhor não vai ter a menor dificuldade em entender.

 
    Antônio sentou-se e o homem, de pé, começou a exposição:

 
    - Antes de mais nada, acho que esqueci de me apresentar. Eu sou o coronel Cruz. Bem, a coisa é a seguinte: o elemento tem raspados os cabelos da parte superior da cabeça e os pelos das pernas, onde serão fixados os eletrodos, mas, quanto a isso, o senhor não precisa se preocupar, temos funcionários especializados no serviço. Depois, o elemento é atado à cadeira por diversas correias, dessa forma - explicou, indicando com setas de giz amarelo os locais onde deveriam ficar as correias.

 
    - Isso impede que, com a descarga elétrica, ele seja arremessado da cadeira – esclareceu o coronel, com a naturalidade de um comissário de bordo antes da decolagem de um avião, e continuou - Finalmente, iniciam-se as descargas elétricas. É aqui que o senhor entra em ação. As descargas devem ser dadas de forma a matar o elemento sem, contudo, carbonizá-lo... É que uma descarga muito forte elimina o elemento, mas provoca queimaduras e pode transformá-lo num verdadeiro churrasco...

 
    Antônio sentiu o estômago dar voltas. Não deveria ter tomado café da manhã... Já não ouvia nada do que o coronel dizia. Ele continuava falando das descargas elétricas, quantas deviam ser, em que intensidade. Enquanto isso, as torradas de Antônio insistiam em voltar. Ele temia que, a qualquer momento, não conseguisse se controlar e vomitasse no meio da sala. Queria desmaiar. Quem sabe, se passasse muito mal, não seria dispensado. Tentou concentrar-se na "aula".

 
    - ...Como o senhor vê, é tudo muito simples. Qualquer dúvida, o senhor pode consultar esta apostila que explica tudo em detalhes. Hoje teremos quatro execuções. Eu vou supervisioná-lo na primeira e, depois, estarei na minha sala, onde o senhor poderá me encontrar caso tenha algum problema. Bom, vou levá-lo à sala de execuções. Por aqui, por gentileza.

 
    Que remédio, tinha que acompanhá-lo... Seguiram até o fim do corredor. Pararam em frente a uma enorme porta, que parecia de cofre de banco, com um buraquinho no meio e uma placa de "Identifique-se" ao lado. O coronel Cruz enfiou o dedo indicador no buraco e a porta se abriu. Passaram, então, a um pequeno hall e pararam diante de mais uma porta. Desta vez o coronel digitou uma senha em um pequeno teclado e passou um cartão magnético na fechadura. Enquanto isso, duas câmaras de circuito interno de televisão vigiavam seus movimentos. Tudo moderníssimo. Entraram, finalmente, em um corredor cheio de guardas armados. O coronel apontou a primeira porta à direita, explicando ser a sua sala. Mais adiante, pararam na frente de um cartaz com um raio vermelho desenhado, como nos avisos de fios de alta tensão:

 
    - Aqui estamos - disse o coronel Cruz, abrindo a porta e sinalizando para que Antônio entrasse. A sala era dividida por um vidro fumê: de um lado, estava a cadeira elétrica; de outro, a mesa com os controles e uma poltrona giratória para o carrasco. O coronel fez questão de mostrar os detalhes da cadeira, elogiando a sua qualidade e conforto.

 
    - Esta cadeira é um modelo americano de 1985, muito eficiente. Como o senhor vê, ela é feita em material da melhor qualidade, toda acolchoada. Não sei pra quê, mas, sabe como é americano... Direitos humanos e essas coisas...- pareceu sorrir da própria observação, mas logo se recompôs e continuou - Enfim, o senhor não precisa se preocupar com a fase preparatória do processo. Um funcionário especializado é encarregado de fixar os eletrodos e atar o elemento à cadeira. Vamos ver os controles.

 
    Após uma rápida explicação, o coronel certificou-se de que Antônio estava bem acomodado na sua poltrona e mandou preparar o primeiro condenado.

 
    - Esse primeiro sujeito é daqueles que dá gosto mandar pro inferno. O senhor já deve ter ouvido falar nesse caso. É aquele animal que invadiu um jardim de infância, amarrou as criancinhas numa árvore e estuprou e esfaqueou as professoras e a diretora na frente delas. Pra completar, ele arrancou os olhos da diretora e comeu com "ketchup". Olha a cara do filho da puta – apontou o homem que vinha entrando, trazido por dois guardas.

 
    Antônio não teve tempo de ver bem o rosto do condenado, mas os olhos eram os de um louco. É, tratava-se realmente de um caso perdido. Tinha que morrer. Do outro lado do vidro, enquanto os guardas atavam o criminoso à cadeira, de seu posto, só conseguia distinguir as silhuetas. Para seu alívio, a sala não tinha janelas e a iluminação era mínima. Respirou fundo e tentou se concentrar nas instruções do coronel. Afinal, talvez a coisa não fosse assim tão sórdida...

 

 
    CAPÍTULO 5

 
    - Pronto, podemos começar. – disse o coronel, parecendo satisfeito com o trabalho dos guardas que deixavam a sala.

 
    - Iniciamos com uma descarga de 2000 volts, por uns seis segundos. Pode acionar o primeiro botão. Fica de olho no cronômetro. – orientou.

 
    Antônio tentava seguir os comandos sem pensar. Não dava. Então tentou se concentrar nas crianças. Era por elas que estava fazendo aquilo. Para que ninguém voltasse a lhes fazer mal.

 
    - Tá certo assim? Já chega? – perguntou.

 
    - Tá. Agora reduz pra 500 volts por um minuto.

 
    Foi seguindo as instruções. Podia ver o vulto do condenado sacudindo-se espasmodicamente na cadeira, em intensidade proporcional à da descarga. 1000 volts por 10 segundos. Mais um minuto de 500 volts e, para finalizar, mais um pouquinho de 2000 volts. A sala toda foi tomada por um cheiro de queimado.

 
    - Muito bem, acho que você já pegou a coisa. - disse o coronel - Esse cheiro é que é extremamente desagradável. Cadê o "bom ar"?

 
    O coronel pegou o spray e saiu borrifando pela sala.

 
    - Agora é só chamar o médico pra passar o atestado de óbito – concluiu e, virando-se para Antônio, pediu - Aperta essa campainha branca, por favor.

 
    Enquanto aguardavam a chegada do médico, Antônio procurou recapitular os últimos acontecimentos e analisar o impacto que lhe tinham causado. Acabara de matar um homem, mas não havia culpa, não se sentia um assassino. Assassino era o condenado, ele mesmo havia traçado seu destino. Antônio apenas cumprira seu dever. Sentia alívio e, no fundo, uma ponta de orgulho.

 
    O médico examinou rapidamente o corpo e, em seguida, chamou dois guardas que o colocaram sobre uma maca e o levaram embora. Na saída, passaram bem ao lado de Antônio, que finalmente pôde ver melhor o rosto do condenado. Parecia, agora, um homem normal. Tinha a face coberta de suor e do nariz escorria um filete de sangue. Por que não o punham logo num daqueles sacos pretos, próprios para defuntos? Como se tivesse lido seus pensamentos, o coronel explicou que o morto seria levado à sala ao lado, onde seria preparado para ser transferido para o hospital, no 2º andar. Lá, seus órgãos seriam aproveitados para transplantes. Portanto, não havia tempo a perder.

 
    - Que interessante. Quer dizer que até um monstro desses, antes de morrer, tem um momento de bondade, em que decide ajudar o próximo? - comentou Antônio.

 
    - Nem sempre é bem assim... Mas dispomos de meios para persuadi-los a colaborar - explicou o coronel, com um olhar de cumplicidade.

 
    Já não se espantava com nada. Quem era ele para questionar os métodos do governo? Tá bem que era uma grande sacanagem... Não havia mais direitos humanos! Mas, por outro lado, seriam humanos esses criminosos? No final das contas, simpatizava com a idéia de aproveitar a morte dessa escória para ajudar as pessoas de bem. Ao mesmo tempo em que matavam um monstro, salvavam a vida de uma pessoa inocente, alguém que ainda podia ser útil à sociedade.

 
    O coronel mandou entrar o próximo condenado e despediu-se de Antônio.

 
    - Agora é com o senhor. Eu tenho uns assuntos para resolver. Qualquer problema, estarei na minha sala. Aliás, antes de ir embora, passe lá pra tomar um cafezinho... Ah! Aqui está o relatório dos crimes dos três próximos elementos. É sempre um incentivo... Até logo e bom trabalho.

 
    Enquanto os policiais preparavam o sujeito para a execução, Antônio aproveitou para examinar as fichas. Elas estavam numeradas conforme a ordem de execução, mas omitiam o nome do criminoso, indicando somente o número da identidade, o sexo e a idade, além, é claro, da descrição dos crimes cometidos.

 
    O próximo condenado era um motorista de táxi tarado, responsável por pelo menos 13 estupros, 4 deles seguidos de morte. Havia, ainda, uma empregada doméstica que assassinou o patrão, a patroa e os três filhos do casal, e depois tentou fugir com as jóias e os dólares da família. Para encerrar, seria executado um seqüestrador que, após algumas operações bem-sucedidas, matou o filho de um empresário que se recusou a pagar o resgate exigido.

 
    Finda a preparação do assassino, Antônio viu-se só com sua missão. Concentrou-se e deu início à primeira descarga. O homem estrebuchava na cadeira. Procurou desviar o olhar, fixando-os nos comandos e no relógio. Por um lado, não queria ver o sofrimento do calhorda... Afinal, apesar de tudo, era um ser humano... No entanto, uma curiosidade mórbida o instigava a dar umas espiadas. E, quanto mais olhava, mais queria ver. Era um caminho sem volta: tanto fazia ver só um pouquinho ou ver tudo. E Antônio queria ver tudo. Mas tinha medo. Poderia ficar traumatizado. Além disso, sabia que não era certo, não era politicamente correto querer acompanhar os detalhes da morte de alguém. Mas estava sozinho, ninguém saberia... Que horror, deveria estar chocado. Chocado. Chocado estava o cara da cadeira... Não! Não podia estar pensando essas bobagens numa hora dessas. Não era um sádico. Com certeza, tudo não passava de um mecanismo inconsciente de defesa de um homem extremamente sensível que, de outra forma, não teria estrutura para suportar uma tarefa tão sórdida. Era puro escapismo... Natural. Normal, até... Agora tinha que enfrentar a realidade e se concentrar nas descargas. Só faltava a última. Isso! Estava encerrado. Tinha matado mais um.

 
    Tudo transcorrendo sem falhas. Estava no pleno controle da situação. Que poder! Durante a terceira execução, começou a sentir um estranho prazer no desempenho de sua função. Um prazer que o Antônio que ele até então pensava ser jamais sentiria. Aquele Antônio já teria desmaiado ou pedido arrego. Era um covarde, o velho Antônio... Não teria coragem de ter prazer. Mas agora o poder o satisfazia. Um poder quase divino!

 
    Estava tomado de uma estranha euforia, quando viu o corpo de sua terceira vítima sendo levado da sala. De repente, foi como se acordasse de um pesadelo. Ou melhor, como se vivesse um pesadelo. A mulher deitada na maca era uma mulata de idade indecifrável, corpo roliço, que lhe dava um ar extremamente maternal. Olhava para ela - o rosto sofrido agora tranqüilo - e a via viva, cheia de energia, carregando duas crianças pequenas no colo e com mais meia-dúzia delas, em escadinha, agarradas à barra de sua saia. Aquela mulher, com certeza, era mãe. As crianças tinham perdido a mãe. Provavelmente, não tinham pai. Ele tinha matado a mãe das crianças. Não tinham mais ninguém. Perambulavam sozinhas pelas ruas, agarradas, agora, à maiorzinha. Choravam, os olhinhos vermelhos, os narizes sujos, as fraldas dos menores imundas. Tinham frio, fome e medo. Onde estariam as pobres crianças?

 

 
    CAPÍTULO 6

 
    - Com licença, podemos preparar o próximo? - perguntou o guarda, cansado de esperar por uma iniciativa de Antônio.

 
    - O quê? Ah, claro - respondeu Antônio, distraído, e, quando o guarda já ia saindo, perguntou – Escuta... Só uma coisa... Aquela mulher que foi levada agora... Você sabe se ela tinha filhos?

 
    - Não sei, não, senhor, mas eu posso perguntar pro pessoal lá da carceragem. Lá eles têm mais contato com os condenados...

 
    - Será que você poderia me fazer esse favor, antes de começar a preparar o próximo? – pediu Antônio, folheando os relatórios que tinha em mãos, fingindo concentração.

 
    - O senhor é que sabe, eu vou dar um pulinho lá e já volto - respondeu o guarda, saindo desconfiado.

 
    Antônio aproveitou para examinar melhor a ficha da mulher. Tinha 45 anos. Bom, talvez não tivesse filhos pequenos... Assassinara 5 pessoas, sendo 3 crianças. Não havia atenuantes. Com ou sem filhos, essa mulher era uma assassina. Mas, não havia jeito, a imagem das crianças órfãs não lhe saía da cabeça...

 
    Finalmente, o guarda voltou com notícias:

 
    - Olha, o pessoal da carceragem disse que ela não deixou filhos, não. Parece que comentou de um, que ajudava ela, mas que morreu num tiroteio com a polícia, há coisa de dois anos. Disse que foi um desgosto tão grande, que nem se importava mais de morrer...

 
    - Ah, muito obrigado. Era só isso que eu queria saber. Pode preparar o próximo, por favor - pediu Antônio, aliviado.

 
    Tratava-se, então, de uma família de criminosos. É, não tinha motivos para sentir-se culpado. Estava executando pessoas da pior espécie. Era como se fosse um médico social, extirpando um câncer do seio da sociedade. Era justo e até natural que se sentisse realizado em cumprir sua missão. E não custava lembrar que não estava ali por opção.

 
    Foi com esses pensamentos que partiu para o extermínio de sua derradeira vítima. E que prazer sentiu... Logo na primeira descarga de 2000 volts, assustou-se ao constatar que a visão do marginal - o corpo contraindo-se em espasmos provocados pela corrente elétrica - lhe provocou uma ereção. Havia algo de erótico na agonia do sujeito. O homem parecia estar tendo orgasmos múltiplos, de intensidades variadas. O próprio Antônio estava a ponto de gozar quando, para sua frustração, teve que interromper as descargas. Já havia dado cabo do criminoso. Se continuasse, iria transformá-lo em churrasco, como havia advertido o coronel.

 
    Resignado, chamou o médico e retirou-se assim que este confirmou o óbito. No corredor, perguntou ao guarda onde ficava o banheiro. Demorou um pouco para conseguir urinar, ainda estava um pouco excitado. Depois, lavou longamente as mãos e o rosto e saiu em direção à sala do coronel Cruz.

 
    - Com licença, o senhor está muito ocupado? - perguntou, pela porta entreaberta.

 
    - Imagine! Por favor, entre - exclamou o coronel, abrindo um largo sorriso e indicando expansivamente a cadeira colocada diante de sua mesa - Sente-se aí.

 
    - Bom, não quero incomodar - explicou Antônio, sentando-se timidamente - Só vim tomar aquele cafezinho que o senhor tão gentilmente ofereceu.

 
    - Ora, o senhor me dá um grande prazer. Sabe, eu fico muito sozinho aqui, sinto falta de uma conversa.

 
    Era um sujeito simpático esse coronel. Um tipo franco, sem papas na língua. Em pouco tempo, Antônio estava completamente à vontade. O coronel mandou trazer café e biscoitos, que Antônio comeu enquanto conversavam animadamente. O militar elogiou muito a sua atuação, diferente da de alguns mariquinhas, que passavam mal, choravam, desmaiavam, e largavam o serviço pela metade. Isso sem falar nas mulheres... Essas, raramente aceitavam a convocação e, quando aceitavam, era um deus-nos-acuda. Mas, isso era natural, o serviço não era próprio para elas. Por essas e outras é que o coronel Cruz não concordava com o método de arregimentação de carrascos. Aliás, considerava o termo "carrasco" muito forte... Coisa da imprensa, que acabou pegando... De qualquer jeito, achava que seria muito melhor se o governo procurasse contratar um pessoal efetivo para o trabalho. Não seria tão dispendioso e pouparia tempo, já que não seria necessário explicar o método a cada novo convocado. O coronel falava com genuína empolgação sobre o tema:

 
    - A propósito, estou trabalhando num projeto que, inclusive, já está tramitando no Legislativo, que propõe essas e outras modificações. O senhor mesmo poderia... Não, não, deixa pra lá...- desistiu o coronel, deixando um enorme suspense no ar.

 
    Ansioso, Antônio perguntou:

 
    - Eu poderia o quê? Por favor, fale.

 
    - O senhor é funcionário do estado, não é?

 
    - Sou sim, por quê?

 
    - É porque... Nada não, bobagem minha. O senhor não se interessaria.

 
    - Ora, por favor, fale logo, acabe com esse mistério - insistiu Antônio, inexplicavelmente sentindo que poderia estar diante da chance de sua vida, embora sequer imaginasse o que o coronel estava a ponto de propor - Como posso saber se me interessa, se o senhor não fala o que é?

 
    - É uma idéia que me ocorreu agora. O senhor, como funcionário público, poderia ser cedido, transferido para outro departamento, sem que isso representasse gasto adicional para o governo. Ou seja, o senhor poderia ser... mas que loucura a minha. O senhor, com certeza, é mais útil no seu serviço e, só porque se saiu bem hoje, não quer dizer que preferiria trabalhar aqui.

 
    Por essa Antônio não esperava:

 
    - Pois é, acho que não. Pra dizer a verdade, não sei. O senhor me pegou desprevenido.

 
    No fundo, bem que gostava da idéia, mas não tinha coragem de admitir. As coisas estavam acontecendo muito rápido. Temia que fugissem ao seu controle.

 
    - Mas é claro que o senhor não sabe - afirmou o coronel - Precisa de um tempo para pensar, não é? Pois tome o tempo que quiser. Pense bem, há uma série de vantagens, a começar pela carga horária do trabalho. Além disso, o senhor estará prestando um valioso serviço à sociedade... Oficial de cumprimento de penas terminativas de vida. Esse é o nome do cargo que eu propus no projeto que está tramitando... Soa bem, não é mesmo?

 
    - Soa. Soa muito bem. – concordou Antônio, grato pela oportunidade de poder responder alguma coisa com convicção e sem saber o que dizer da proposta de trabalho.

 
    O coronel levantou-se e saiu de trás de sua mesa. Tirou do bolso do paletó um cartão, que estendeu a Antônio, dizendo:

 
    - O senhor pense bem, avalie os prós e os contras e, quando chegar a uma conclusão, me avise. Seria ótimo tê-lo em minha equipe.

 
    Antônio pegou o cartão e, incapaz de articular uma resposta, ergueu-se da cadeira e apertou a mão que o coronel lhe oferecia. Despediram-se assim: o militar confiante na decisão de Antônio - que, fosse qual fosse, seria a mais acertada - deu-lhe uns tapinhas nas costas e reiterou o prazer que fora conhecê-lo; Antônio balbuciou uma resposta, concordando em telefonar logo que decidisse, despediu-se e saiu da sala completamente desorientado.

 

 
    CAPÍTULO 7

 
    Quando saiu à rua, o sol do meio-dia bateu-lhe direto nos olhos, cegando-o por alguns instantes. À luz do dia, o que havia acontecido não lhe parecia real. As horas passadas dentro daquele caixote de cimento e vidro fumê, iluminado com luzes fluorescentes, tinham ficado distantes, irreais. Aquilo tudo não podia ser verdade: o homem que matou friamente quatro pessoas não podia ser ele. Tinha que esquecer. Não dava pra conviver com a aquela memória. E agora, o que faria? Na proposta, não ia nem pensar... Mas precisava decidir o que fazer, para onde ir, naquele momento. Era cedo para ir para casa. Se voltasse já, teria que inventar desculpas. Mas, talvez fosse melhor. Ficar perambulando pela rua não lhe faria bem algum. Precisava se recolher ao seu lar, encontrar sua realidade, seu cotidiano, sua família. Só assim conseguiria afastar da memória a manhã de horror que acabara de viver.

 
    Chegou em casa e foi para o quarto, sem falar com ninguém. Sua mulher só voltaria à noite. Isabel só chegaria do colégio à tardinha e Luísa estava trancada no quarto, falando ao telefone, e nem o ouviu entrar. Aliás, teve a impressão de ouvir um som de choro quando passou pela sua porta... Devia ser só impressão ou, quem sabe, briga com o namorado. De qualquer jeito, não estava com cabeça para conversar com ela. Depois que relaxasse um pouco, veria o que estava se passando. Será que tinha alguma coisa a ver com o assunto que queria falar com ele? Seria grave? Bobagem... Adolescentes choram à toa. Tratou de deitar-se e tentar dar uma cochilada.

 
    Acordou, horas mais tarde, suando frio. Teve pesadelos horríveis, dos quais não se lembrava. Ficou um pouco quieto na cama, olhando para o teto escuro e concentrando-se nos sons que vinham da sala. Ouviu uns soluços, que pareciam de Luisa, e também a voz de Vera. O que teria acontecido para sua filha estar chorando até agora? Ou seria Isabel, ou mesmo Vera? Será que estavam todas chorando? Teriam descoberto que ele era um assassino? Queria ir até lá, ver o que estava acontecendo, mas, mesmo sem ter a mais vaga noção do problema, já se sentia culpado. A curiosidade e a preocupação acabaram por vencer a culpa. Levantou-se e foi até a sala.

 
    A cena era dramática: Vera, sentada no sofá, e Luísa, deitada no seu colo, aos prantos. Sua mulher também estava com cara de quem tinha chorado... Tomaram um susto quando o viram e tentaram se recompor.

 
    - O que você estava fazendo aí? - perguntou Vera, agressiva.

 
    Era só o que faltava, tratava-o como a um intruso.

 
    - Eu saí mais cedo do trabalho porque não estava passando bem, mas, eu é que pergunto: O que está acontecendo aqui? – contra-atacou.

 
    Luísa, que repentinamente havia parado de chorar, empinou-se no sofá e, com um ar controlado, respondeu:

 
    - Eu estou com um problema sério. Era sobre isso que precisava conversar com você.

 
    - Então fala logo, menina, você quer que eu tenha um enfarto? Fala logo o que é; eu não sou adivinho. Aliás, eu sou sempre o último a saber das coisas nesta casa – reclamou, impaciente. Quando percebeu seu descontrole, já era tarde demais: Luisa desatara a chorar novamente, abraçada à mãe, que tentava acalmá-la.

 
    Vendo que seria impossível continuar a conversa naquele tom, sentou-se e respirou fundo antes de continuar:

 
    - Desculpe, minha filha, é que eu tive um dia muito difícil. Vai passar uma água no rosto pra ver se você se acalma, assim nós podemos conversar.

 
    Enquanto Luísa estava no banheiro, tentou extrair alguma informação de sua mulher, mas Vera fechou-se em copas, preferia deixar que a filha contasse o problema à sua maneira, no seu tempo. Esforçou-se para manter a calma. Sua vontade era gritar e sacudir as duas, até que lhe contassem a razão do drama. Sua cota de suspense já se esgotara. Seus nervos estavam estropiados e sua paciência por um fio...

 
    Luísa voltou do banheiro e sentou-se no sofá, bem em frente à poltrona onde o pai a esperava:

 
    - Pai, é o seguinte: Vou falar logo, sem rodeios. Estou grávida.

 

 
    CAPÍTULO 8

 
    Não podia ser. Uma criança não engravida. Estava tendo um pesadelo, mais um. Aquele dia não existia. Era pura imaginação. Ou seria castigo? O castigo mais rápido do oeste.

 
    - Como é que é? – perguntou, mais para ganhar tempo, pois tinha entendido perfeitamente.

 
    - Eu estou grávida, pai. – repetiu, Luisa, pacientemente, e logo acrescentou – Mas eu decidi abortar.

 
    Era só o que faltava! Quem aquela pirralha pensava que era, pra falar com ele daquele jeito? "Eu decidi abortar". Como podia sair decidindo coisas, sem nem ao menos ouvir sua opinião? Mas, pobrezinha, devia estar sofrendo. Tinha que manter a calma.

 
    Luisa fitava-o, aguardando ansiosa por sua reação. O que dizer? Ele nunca tinha preparado algo pra dizer nessa situação. Até já tinha pensado no risco de isso vir a acontecer, mas sempre afastou o pensamento, achando melhor nem pensar, para não atrair. Agora se arrependia. Se tivesse um discurso ensaiado, como o que tinha pronto para o dia em que descobrisse que alguma das filhas estava fumando maconha... Já que não tinha, não podia demonstrar insegurança. O melhor era ir por partes:

 
    - Bom, vamos com calma, você tem certeza?

 
    - Peguei o resultado do exame ontem à tarde - respondeu Luísa, um pouco mais serena.

 
    - E porque você só está me contando isso agora? - perguntou, indignado.

 
    Não dava pra entender como ele não tinha percebido nada antes. Tentava lembrar algum sinal, alguma coisa estranha, mas não lembrava de nada. Na verdade, nos últimos tempos ele estava preocupado demais com a tarefa daquela manhã para prestar atenção ao comportamento de sua família.

 
    - Eu precisava pensar. E, também, tinha que falar com o Marquinhos. - respondeu Luisa, com uma naturalidade que já o estava tirando do sério.

 
    Aliás, Vera também assistia à conversa sem demonstrar qualquer espanto. Parecia achar normal a atitude da filha. Com certeza, já estava sabendo de tudo desde o começo, desde a primeira vez da filha. E não lhe contara nada. Diria que não podia trair a confiança da filha, pois perderia a cumplicidade que tinham... Isso mesmo, elas eram cúmplices! E ele era um palhaço. Parecia que o assunto não lhe dizia respeito. Estava, apenas, sendo comunicado.

 
    - Ah, você precisava falar com o Marquinhos... Com certeza foi ele quem te apontou a saída brilhante do aborto - respondeu e, virando-se para Vera, continuou - E você está de acordo com tudo isso, não é? Tá vendo no que dá dar liberdade demais para crianças? Eu pensei que, pelo menos, você tivesse ensinado a sua filha a usar anticoncepcionais...

 
    - Chega, Antônio! Será que você não vê que só está piorando a situação? A última coisa que precisamos agora é do seu "eu disse, não disse?". Sua filha precisa de apoio e não de bronca – e, vendo que Luísa já começava a chorar de novo, Vera voltou-se para a filha, concluindo - E você, vê se pára de chorar, porque também não adianta nada...

 
    O.K., ele ia tentar agir civilizadamente, muito embora sua vontade fosse dar umas boas palmadas na filha e mandar dar uma surra naquele desgraçado daquele Marquinhos:

 
    - Você tem razão, Vera. - odiava essa frase, mas tinha aprendido a dizê-la em momentos cruciais, quando não podia se dar ao luxo de ter a mulher contra ele - Agora, Isabel, me explica como você foi engravidar. Eu acho que você sabe como evitar, não sabe? E, outra coisa, há quanto tempo você vem transando com esse rapaz?

 
    As lágrimas continuavam rolando pelas bochechas da menina, mas ela respondeu:

 
    - Foi só uma dia, foi na primeira vez. Eu ainda não tinha começado a tomar as pílulas que o ginecologista receitou pra mim. Já tinha até comprado, mas só ia começar no outro mês. Aí a gente usou camisinha. Acho que ela devia estar furada...

 
    Essa era demais, sua filha estava achando que ele era um idiota. - Furada! Você acha que eu sou débil mental? Se você dissesse uma coisa dessas há vinte anos atrás, eu até podia acreditar, mas, hoje em dia, camisinha não tem furo e só arrebenta se o cara não souber como põe, como esse seu namoradinho idiota...

 
    -Bom, eu mesma sou fruto de uma camisinha arrebentada, não sou? - disse-lhe a filha, com ar irônico.

 
    Quando é que sua mulher ia aprender a não contar tudo para as filhas? Lançou um olhar fulminante para Vera, que nada viu, pois olhava para o teto, a fim de evitá-lo..

 
    - Pois é, Luísa, só que isso aconteceu há mais de quinze anos, quando as camisinhas não tinham a qualidade que têm hoje.

 
    - Tá bom, pai, não sei de que adianta te contar isso, mas já que você insiste... A gente só tinha uma camisinha. Aí, da segunda vez, ele gozou fora, mas acho que alguma coisa deu errado.

 
    - Ha! Gozou fora! - não acreditava que estava tendo aquela conversa com a filha, a simples idéia de aquele Marquinhos gozar: fora, dentro ou em qualquer lugar próximo à sua filha, o deixava furioso - Você tem muita desenvoltura pra usar esse tipo de vocabulário com o seu próprio pai, mas é completamente ignorante. Ninguém nunca te ensinou que "gozar fora" não é seguro? Meu deus, eu pensei que ensinavam isso no colégio...

 
    - Foi você quem perguntou, e eu sei que não é seguro, eu sei que o cara pode errar a hora e...

 
    - Você não sabe porcaria nenhuma! É incrível, mas você não sabe nada. De que adiante essa porcaria dessa educação moderna? Você só aprendeu besteira sobre sexo. Não sabe que antes da ejaculação (é ejaculação que se diz, não "gozar") já pode haver esperma suficiente para engravidar a mulher? Mas agora você vai ter muito tempo para ler sobre o assunto, antes de fazer outra besteira, porque eu não vou admitir que você faça um aborto.

 
    Vera interrompeu:

 
    - Ora, Antônio, isso não...

 
    - Me deixa falar, tá? Garanto que você já teve muito tempo pra falar. Agora é a minha vez. Aborto é ilegal e, além disso, é imoral. Ainda mais nesse caso. Luísa, você engravidou por pura irresponsabilidade. Não é justo sacrificar, assassinar mesmo, um ser humano porque você foi irresponsável. Eu sei que você é muito nova, mas nós podemos ajudar a criar essa criança.

 
    Luísa estava atônita, as lágrimas rolando. Vera levantou-se e revidou, quase aos berros:

 
    - Eu não acredito, Antônio. Você, um defensor da pena de morte, preocupado com a vida de um embrião. Você devia se preocupar mais com a vida da sua filha.

 
    Antônio levantou-se, também, para enfrentar a mulher:

 
    - Um embrião inocente! Ele já tem vida, mas não tem culpa. Vocês querem aplicar a pena de morte para um bebê que não fez nada de errado e que não tem a menor chance de se defender.

 
    - Bebê! Ora, deixa de pieguice. É um embrião, um pontinho de nada. Melhor rejeitá-lo agora do que depois. Quem tem que saber se quer ou não o filho é a Luísa. No máximo, o Marquinhos.

 
    - Lindo, o Marquinhos! Cadê ele? Por que não está aqui, aquele imbecil?

 
    - A gente teve uma briga ontem. Eu falei que talvez eu quisesse ter o bebê e ele disse que, se eu fizesse uma loucura dessas, eu ia estragar a minha vida e a dele também - respondeu Luísa, olhando para o chão.

 
    - Tá vendo, Vera, ela quer ter o bebê! Ela só precisa do nosso apoio. Minha filha, eu sei que é uma responsabilidade muito grande, mas nós estamos aqui pra te ajudar. Você não vai querer viver com a culpa de um aborto.

 
    Luisa levantou-se e começou a andar de um lado para o outro.

 
    - Eu não sei, eu tô confusa. Eu sempre quis ter um filho, mas não tão cedo. Eu não quero estragar a minha vida. Eu não sei, não sei mesmo...

 
    Antônio foi abraçar a filha.

 
    - Pensa mais um pouco, é a vida de um ser humano que está em jogo - disse, olhando afetuosamente para a barriga da filha e acariciando-a.

 
    Vera saiu para o quarto, batendo a porta.

CAPÍTULO 9 



         Quando Antônio foi para o quarto, Vera já estava deitada, fingindo dormir. Ficou até tarde conversando com Luisa. Isabel, graças a Deus, fora dormir na casa de uma amiguinha. Assim, eles puderam conversar com calma. Tinha quase certeza de que conseguira convencer a filha a desistir do aborto. Agora precisava tentar fazer as pazes com Vera...

         Enquanto tomava uma chuveirada, procurou recapitular os acontecimentos do dia. O coronel, a cadeira elétrica, as execuções, a gravidez de Luisa, a manipulação de Vera, o aborto, o neto. No começo, sentiu aversão pelo que tinha feito, mas, conforme foi se lembrando das descargas elétricas, a mesma emoção que dele se apoderara nos últimos momentos voltou a tomá-lo. O poder, ele estava no comando. Dependiam dele a vida e a morte das pessoas. De manhã, matara; à noite, salvara. Tinha um papel de destaque na eterna luta entre o Bem e o Mal.

         Saiu do banho orgulhoso, sentindo-se um homem forte, a prova de sua virilidade em riste. Deitou-se na cama ao lado de Vera. Tentou abraçá-la, mas ela se esquivou. A resistência era natural... Noutros tempos, poderia sentir-se rejeitado e inseguro, mas agora sabia que acabaria vencendo. Afinal, era poderoso. Pela primeira vez na vida, sentia-se seguro, absoluto, um vencedor. Até hoje tinha sido um banana, um medíocre.

         Perdera a fortuna do pai por inexperiência e descaso. A verdade é que tinha sido educado para gastar, e não para ganhar. A morte do pai o surpreendera precocemente, quando não tinha ainda na vida maiores interesses do que sair para azarar umas gatas nos lugares da moda e esbanjar o dinheiro fácil da mesada. Nada sabia do mundo, não estava interessado. Então, quando se viu, aos 20 anos, herdeiro dos negócios do pai, assumiu como quem vai brincar de executivo. Jogou dinheiro fora, investindo em idéias mirabolantes, foi passado para trás por concorrentes, fornecedores e até por amigos. Sua mãe estava deprimida demais para perceber o que estava acontecendo e só acordou a tempo de salvar o suficiente para uma subsistência de classe média. Antonio custou a acreditar que o dinheiro do pai, que lhe parecia infinito, tinha acabado.

         Desde então, era um fracassado. Só não tinha sido pior porque se apaixonara por Vera aos 22 anos de idade, quando estava dando cabo dos últimos tostões da família. Ela era três anos mais velha e já estava encaminhada na vida, ganhando seu próprio sustento. Quando engravidou, acidentalmente, decidiu ter o filho, com ou sem a sua ajuda. Estava pronta para arcar com uma produção independente. No entanto, casaram-se. Foi um casamento sincero, por amor, do qual ele nunca se arrependeu. Vera foi o seu apoio. Graças a ela, ele concluiu o curso de Direito e estudou o suficiente para fazer o concurso que lhe rendeu o cargo público que ora ocupava. Não era o trabalho dos seus sonhos... Mas, quando é que tinha sonhado com trabalho? Enfim, amava sua mulher e era completamente dominado por ela. Isso nunca o incomodara muito. Até hoje.

         Hoje a sua vida estava começando a mudar. O primeiro dia do resto de sua vida. O clichê era perfeito para descrever o que sentia. Abraçou a mulher, que estava deitada de costas para ele, de forma que ela sentisse sua ereção. Vera resmungou qualquer coisa, mal-humorada, e se afastou. Antônio insistiu. Vera o empurrou. Segurou-a com força e enfiou a mão entre suas pernas. Ela virou-se e o encarou:

         - O que você tem? Enlouqueceu?? – perguntou, sarcástica.

         - Por quê? Precisa estar louco pra querer transar com a própria mulher? – retrucou, enquanto passava a perna por cima do quadril de Vera. O que normalmente o faria brochar, hoje, o estimulava.

         Se ela estava pensando que iria fazê-lo desistir, estava muito enganada. Certa vez a ouvira queixando-se a uma amiga... Dizia que sentia falta de um pouco de agressividade; que ele não tinha “pegada”... Já fazia tempo que desistira de entender as mulheres, era mais fácil atendê-las. Montou em Vera, penetrando-a bruscamente, enquanto enterrava o rosto no seu pescoço. Ela deu uns gritinhos, tentou se soltar, mas depois relaxou e se deixou dominar.

         Tiveram uma noite maravilhosa. Vera não disse nada, mas ele sabia que sua performance tinha sido espetacular. Estava completamente esgotado. Seus últimos pensamentos, antes de adormecer, foram sobre a proposta do coronel. De certa forma, aquela manhã tinha sido positiva. Aliás, tinha sido revigorante, excitante, emocionante. Era disso que ele precisava. Já estava cansado de ser um mero funcionário burocrático, um mosca morta, um frustrado. Queria poder, ação... É, não podia deixar escapar a oportunidade de dar uma reviravolta na sua vida. Telefonaria amanhã mesmo.



CAPÍTULO 10


      Na manhã seguinte, tomou o café com a esposa e a filha. Luísa ainda estava com os olhos inchados de tanto chorar, mas estava bem mais calma. Aliás, a calma inundava o ambiente. Conversaram em voz baixa, sem nenhuma exaltação. Concordaram em não tomar nenhuma atitude precipitada, a gravidez de Luísa ainda estava na sexta semana. Ela já não tinha certeza se queria abortar. De qualquer jeito, os pais acatariam e apoiariam a sua decisão. Antônio sabia que não seria bem assim. Ele conseguiria convencer a filha a ter o bebê. Seria um menino: o filho que ele não teve.

      Quando, finalmente, Vera e Luísa saíram, aproveitou para telefonar para o coronel. O entusiasmo do militar ao ouvi-lo era contagiante. Marcaram um encontro para o almoço, em um restaurante discreto.

      Na repartição, Antônio não teve concentração para nada. Já não estava mais ali, pouco importava o que fizesse ou deixasse de fazer, talvez fosse seu último dia. Lúcio veio perguntar-lhe sobre a convocação do dia anterior:

      - E aí, Antônio, como foi ontem?

      - Eu preferia não falar nesse assunto, espero que você compreenda... – respondeu, fingindo ocupar-se de alguns papéis à sua frente;

      - Claro, me desculpe, acho que foi mesmo falta de tato minha perguntar assim... É que eu estava curioso... Mas, não se fala mais nisso. E a família? E Luísa? Já está uma moça, né? Bonita como a mãe... – insistiu o amigo, obviamente sedento por uma conversa que o mantivesse o mais distante possível do trabalho.

      Lucio tinha realmente o dom da inconveniência... Perguntava a esmo e sempre conseguia tocar nos assuntos que as pessoas mais queriam evitar. Tinha vontade de mandá-lo à merda – como já fizera algumas vezes – mas preferiu se controlar. Afinal, faltava pouco para que se visse definitivamente livre do interrogatório matinal do colega.

      - É verdade, mas tampouco quero conversar sobre isso. Aliás, acho que não estou pra muita conversa hoje. – respondeu, tentando, sem sucesso, não ser demasiado antipático.

      - OK, OK, quando o seu humor melhorar, me avisa.- Lucio encerrou a conversa, com ar magoado.

      Ao meio-dia em ponto, Antônio chegou ao restaurante escolhido pelo coronel Cruz. Era um pequeno restaurante natural, na Travessa do Ouvidor, um dos últimos “à la carte” em meio aos “quilos” que proliferavam no centro da cidade. Não era muito chegado à alimentação saudável, mas pouco importava a qualidade da refeição, qualquer sacrifício valeria a pena. O coronel já o aguardava, sentado a uma mesa ao fundo. Quando o avistou, levantou-se e cumprimentou-o efusivamente:

      - Ora viva, quem diria?! Eu tinha quase certeza de que o senhor aceitaria minha proposta, mas não pensei que fosse ser tão rápido.

      - Pois é, eu também não...- respondeu Antônio, um pouco constrangido com a recepção e tomando assento em frente ao coronel.

      - Mas, deixemos os negócios para depois. Garçom! O cardápio, por favor! – o coronel acenou para o garçom e depois, voltando-se para Antonio, continuou – As saladas são todas muito boas... e podem vir com carne do soja ... Mas tem também as massas, que são uma excelente pedida para os não vegetarianos... Eu acho que vou na salada de brotos com almôndegas de soja. É uma delícia!

      O garçom trouxe os cardápios. Antônio examinou o seu distraidamente e acabou escolhendo uma salada de macarrão com tomate e queijo. Era o que havia de mais inofensivo no menu, já que não envolvia verde nem soja.

      A comida foi servida em poucos minutos. As almôndegas do coronel exalavam um aroma esquisito, mas ele não cansava de elogiá-las. Discorreu longamente sobre os benefícios de uma alimentação vegetariana: para o indivíduo e para a sociedade como um todo. Cadáveres eram comida apropriada para abutres. Entrou em detalhes sobre digestão e decomposição, enquanto Antônio, grato por não estar diante de um bife, se esforçava para apreciar sua salada. Foi só na hora do cafezinho que o coronel tocou no assunto que os reunira:

      - Bom, pelo que eu entendi, o senhor decidiu aceitar a minha proposta.

      - É, em princípio, eu estou interessado, sim... Mas eu gostaria de saber mais detalhes.

      - A coisa é a seguinte: ainda não enviei meu projeto pelas vias oficiais, mas, informalmente, já conversei com meus superiores, que têm o poder de decisão, e eles me garantiram apoio total. Sugeriram que encontrasse um funcionário público estadual interessado no cargo, para fazer uma primeira experiência, que, se resultar positiva, será implementada definitivamente, não só aqui no Rio, mas em todo o país. É importante deixar bem claro que o senhor não correrá risco algum. Se, porventura, a minha idéia não der certo, o senhor voltará à sua lotação atual. O senhor terá essa garantia... Mas, eu tenho plena convicção de que não será necessário...

      - Ótimo, coronel, isso é muito tranqüilizador... Só que tem outra coisa que me preocupa... Eu não gostaria que ninguém viesse a saber da minha nova atividade...

      - Claro! Quanto a isso, o senhor pode ficar completamente descansado: a sua função, assim como a minha, será absolutamente sigilosa. Inclusive, o senhor não estará autorizado a revelá-la a ninguém, nem mesmo à sua família. Para todos os efeitos, o senhor será transferido para outro departamento, em missão sigilosa.

      - Maravilha, o senhor não imagina o alívio que essa informação me dá... Agora, outra coisa que eu gostaria de saber é se seria possível obter um aumento salarial. Não sei, uma gratificação ou algo assim. É que a vida está difícil e, pra completar, ontem fiquei sabendo que, em breve, teremos mais uma boca para alimentar na minha casa.

      - Meus parabéns! O senhor já tem filhos ou é o primeiro?

      - Eu tenho duas filhas, coronel, e já e mais do que o suficiente... A novidade é que a mais velha está grávida.

      - Meu Deus, não pensei que o senhor já tivesse idade pra ser avô! – exclamou o Cel. Cruz, genuinamente surpreso.

      - Nem eu, nem eu...- respondeu Antonio, balançando a cabeça, desanimadamente, mas com um leve sorriso nos lábios.

      - Que loucura... Mas, voltando ao assunto, eu compreendo perfeitamente a sua preocupação. Veja bem, num primeiro momento, o cargo que eu imaginei, “Oficial de Cumprimento de Penas Terminativas de Vida”... Me perdoe a falta de modéstia, mas acho perfeito esse título que eu bolei... Mas, enfim, num primeiro momento, o cargo ainda não existirá. Então, o senhor vai continuar ocupando o seu atual cargo efetivo. Mas, eu já pretendia mesmo oferecer um incentivo financeiro... Então requeri a concessão de um adicional de periculosidade e outro de insalubridade para a função. Eu não posso jurar que vão sair, mas a probabilidade de que consigamos ao menos um deles é grande. Afinal, a função é evidentemente estressante. É uma enorme carga emocional... E o perigo, embora a gente saiba que não há risco nenhum, acho que todo mundo que lida com criminosos perigosos deve receber um adicional de periculosidade... O perigo é inerente, se é que o senhor me entende...

      - Maravilha! O senhor pensa em tudo! Por mim, estou à sua disposição para começar quando o senhor achar melhor.

      - Ótimo, ótimo. Hoje mesmo vou tratar da sua requisição em regime de urgência. Entro em contato até o final da semana para que o senhor comece na próxima segunda-feira. Enquanto isso, sugiro que não comente nada na sua repartição.

      - Perfeito. Aliás, é melhor nós irmos andando, porque eu não quero levantar nenhuma suspeita com ausências mais demoradas que o normal.

      - É, vamos sim. Garçom! A conta, por favor!


CAPÍTULO 11


Naquele almoço Antônio selou a grande guinada de sua vida. Nas semanas seguintes, conseguiu tudo o que queria. Deixou a repartição sem dar maiores explicações aos colegas de anos de trabalho. Em casa, informou o estritamente necessário: tinha sido transferido em missão secreta; trabalharia só na parte da manhã e ganharia mais (o adicional de insalubridade foi confirmado). Cercou-se de um clima de mistério que muito o agradava; sentia que ganhava importância aos olhos de todos. Suas filhas ficaram excitadíssimas, achavam que ele era uma espécie de espião, um agente secreto. No começo, encheram-no de perguntas, mas logo conformaram-se em fantasiar sobre o trabalho do pai.

        Com Vera, a coisa já foi mais difícil. Custou muito a aceitar que não poderia saber qual era o novo trabalho do marido. Tentou, de todas as maneiras, arrancar alguma informação. Brigou, chorou, "jogou verde", fingiu aceitar para revistar seus papéis e seu celular, enquanto ele estava no banho, fez ameaças, bancou a vítima, e até tentou segui-lo até o trabalho... Mas Antonio estava atento e preparado. Foi paciente, porém firme. Vera acabou desistindo e contentou-se com um número de telefone fixo onde poderia encontrá-lo em caso de emergência. Afinal, com o aumento salarial de Antonio, não dava para reclamar.

        Mas, o melhor foi que suas novas condições de trabalho lhe renderam argumentos para convencer Luisa a lhe dar o neto que tanto queria. Afinal, ganharia mais e ainda teria as tardes livres para ajudar a tomar conta do bebê. Nunca tinha sido um grande apreciador de crianças e, muito menos, de bebês, mas agora estava simplesmente obcecado com a idéia de ter um neto. Talvez fosse porque, pela primeira vez na vida, tinha certeza absoluta do caminho a tomar. Não se iludia, sabia que seria difícil, mas estava convicto de que era a decisão certa. Sua filha aprenderia que seus atos têm conseqüências e que não podia escapar às responsabilidades. Era a mesma coisa com os condenados, embora, no caso deles, o aprendizado viesse de forma um tanto tardia e fatal...

        Conversou muito com Luisa. Era importante que ela mesma tomasse a decisão. Jamais pensou, no entanto, que fosse ser tão fácil. Esperava mais resistência da filha e, principalmente, de sua mulher. Mas Luisa parecia ansiosa por delegar a decisão; enquanto Vera, estranhamente confusa, não conseguia articular seus argumentos, sua indignação e seus conselhos. Às vezes, a surpreendia, observando-o com ar intrigado. Ela também estava sob o efeito do novo Antonio. Todos estavam. No fundo, não fora seu aumento, nem sua disponibilidade de tempo, que tinham influenciado a decisão de Luisa. Sua filha seguiu sua orientação porque percebeu o poder que dele emanava. E Vera sentiu que não tinha força para enfrentá-lo.



CAPITULO 12


Pela primeira vez na vida, Luisa se sentia mais próxima de seu pai do que de sua mãe. Antonio a estava apoiando em tudo, até convidara Marquinhos e seus pais para jantar! Sua relação com o namorado estava bastante estremecida. Ele não compreendia sua decisão. Dizia que não queria ser pai e que ela estava arruinando a vida de ambos. Luisa tinha esperanças de que, após conversar com Antonio, Marquinhos mudasse de idéia.


Ajudou a mãe a pôr a mesa, em silêncio. Vera andava calada e distante.

- Mãe, você podia pelo menos fingir que está de acordo com a minha decisão...- provocou, enquanto dobrava os guardanapos.

- Se eu tivesse certeza de que a decisão é sua, e não do seu pai...- retrucou Vera, na mesma moeda.

- Sabe, se os pais do Marquinhos perceberem que você é contra, vai ser mais difícil... – insistiu, chorosa.

- Eu não sou contra nada, minha filha, eu só tenho medo que você esteja se deixando levar pelas idéias do seu pai e não esteja percebendo a gravidade da decisão que está tomando... Mas eu não sou contra... Nem poderia ser... Eu só quero a sua felicidade, e faço o que for preciso para te ajudar...- Vera aproximou-se da filha e enxugou a lágrima que escorria no seu rosto, depois acariciou sua cabeça e concluiu – Agora melhora essa cara, porque eles já devem estar chegando.

- Obrigada, mãe... Eu vou lá no quarto trocar essa blusa, que acho que está me engordando...- disse Luisa, desvencilhando-se da mãe e saindo em direção ao corredor.

- Aproveita e passa uma água no rosto! – lembrou Vera, ajeitando os talheres da cabeceira. Não adiantava bancar a distante. Sua filha precisava de apoio incondicional e ela o teria.


CAPÍTULO 13

Alguns minutos depois, a campainha tocou. Luisa veio correndo do quarto para atender. Vera já conhecia Marquinhos há tempos e até simpatizava com o garoto. Entendia qual era o seu apelo, embora fosse ainda um menino praticamente imberbe. Tinha grandes olhos negros emoldurados por cílios longos e grossos, que pareciam saídos de um anúncio de rímel. Os cabelos, também escuros, viviam despenteados e caindo no rosto. A pele muito branca destacava a boca vermelha, que parecia pintada de batom. Ele quase nunca sorria ou demonstrava qualquer emoção. Fazia o tipo blasé. Mas, nas poucas vezes em que Vera o flagrara sorrindo, suas covinhas a deixaram dividida entre a vontade de protegê-lo e a de seduzi-lo. Naquela noite, todavia, só o via como um menino idiota, que estava fazendo sua filha sofrer. Assim mesmo, precisava evitar que Antonio fosse desagradável com os convidados.


Luisa abriu a porta, sob o olhar de seus pais, que aguardavam na retaguarda. Cumprimentou o namorado com um selinho e os "sogros" com dois beijinhos. Marquinhos beijou Vera e apertou a mão de Antonio, sem olhar nos seus olhos, mas sem baixar o olhar. Um mau começo, pensou Vera. Nunca tinha reparado como o garoto era dissimulado... E os pais? Luisa não a advertira de que se tratava de um casal alternativo: ele, artista plástico; ela, instrutora de ioga. O figurino não deixava margem a dúvidas. A noite prometia, na melhor das hipóteses, momentos de grande tensão e constrangimento e, na pior, um verdadeiro desastre. Antonio apresentou-se aos pais de Marquinhos, Igor e Monica, olhando-os de cima a baixo, sem disfarçar. Vera já imaginava os comentários que ouviria mais tarde... Hipongas!!! Será que ninguém os avisara de que os anos setenta passaram? Não é à toa que esse Marquinhos é um irresponsável... Com esses pais!!!


De fato, eram também uns irresponsáveis e, como tais, garantiram apoio a qualquer decisão que Luisa viesse a tomar. “Um filho é uma aventura”, disseram. Marquinhos ainda era uma criança, mas eles ajudariam. Não tinham grande disponibilidade financeira, mas, em compensação, tinham disposição de sobra, afirmaram, às gargalhadas, sem se importar que ninguém mais entendesse a graça do comentário... Monica aproveitou para aconselhar Luisa a iniciar, o quanto antes, a prática de ioga. Arranjaria uma aula gratuita na academia onde lecionava. Conhecia, também, uma excelente parteira: uma alemã que fazia partos em casa, de cócoras ou na água. Quando a instrutora de ioga começou a discorrer sobre as propriedades nutritivas da placenta e as possibilidades de preparo para consumo pelos pais, Vera não resistiu ao olhar apavorado de Luisa e interrompeu o discurso da convidada para anunciar que o jantar seria servido.


Considerando tudo o que só podia ter dado errado, a noite foi um verdadeiro sucesso. Antonio, cuja única preocupação era impedir que Luisa desistisse do bebê, relevou todos os defeitos dos avós de seu futuro neto e comportou-se muito melhor do que Vera poderia esperar. Marquinhos entrou mudo e saiu calado. Conversou a sós com Luisa, no seu quarto, por alguns minutos, antes de ir embora. Não saíram com as melhores caras, mas, pelo menos, não fez Luisa chorar... Já era alguma coisa.


Quando fechou a porta atrás dos convidados, Vera foi direto para a cama. Não queria comentar nada com o marido e a filha. Precisava pensar. Tentar entender a situação, antes de emitir qualquer opinião. Sentia-se um tanto oprimida pela noção, cada vez mais real, de que, em breve, seria avó.


O CARRASCO - 14



    - São uns merdas esses pais do Marquinhos! – grita Antonio, sentado na cama, em direção ao banheiro, onde Vera está removendo a maquiagem – Uns verdadeiros merdas... Hipongas irresponsáveis... Mas não tem problema, não, já estarão ajudando muito se não atrapalharem... Hein, Vera, tá me ouvindo?
    - Tô, Antonio... – responde Vera, enquanto enxuga o rosto na toalha.
    Preferia não ter essa conversa, mas, por algum motivo que fugia à sua compreensão, ultimamente vinha sendo muito difícil contrariar Antonio. Não parecia mais o mesmo homem com quem se casara. Depois de mais de 15 anos de vida em comum, era até instigante essa sensação, mas, nem por isso, menos perturbadora. Se bem que o discurso era exatamente o que ela previra...
    - E o garoto? Um banana! A gente cria filha pra isso... Pra vir um moleque sem-vergonha, mal saído das fraldas, com cara de sonso, e levar ela pra cama... Só de pensar, chega a me dar uma sensação ruim no peito... Mas, pelo menos, os bichos-grilos vão dar "o maiorrrr apoio"... – Antonio puxa o "r" e ri da própria piada.
    Já está se sentindo melhor... Aliás, sente-se muito bem. Aliviado. Era importante ter o apoio dos pais de Marquinhos, num primeiro momento. Assim, havia menos risco de ele influenciar Luisa a desistir da criança... Agora tinha certeza de que isso não aconteceria. Mais um mês, no máximo, e já não haveria como voltar atrás. A noite tinha sido um sucesso! Queria comemorar. Mas Vera estava demorando no banheiro...
    - Vera! Vem logo! Por que tá demorando tanto?
    Era só o que faltava! Depois de um jantar exaustivo desses, Antonio ainda queria sexo. Pensou em responder, "porque acabei de menstruar e estou com uma tremenda cólica", mas até mentir para seu marido estava ficando mais difícil...
    - Amor, eu tô morta de cansaço... Vamos deixar pra amanhã, vamos? – responde, entrando no quarto, de camisola de renda preta (um erro, mas era a que estava usando aquela semana, e já a tinha vestido antes de perceber as intenções de Antonio).
    - Cansada! A avó mais sexy do Brasil está cansada?! Nananinanão! Eu tenho uma surpresinha pra você... Nem vai precisar fazer esforço algum – diz Antonio, puxando a mulher para a cama – Deita aqui e fecha os olhos.
    De que adiantaria negar? Melhor relaxar... Pelo menos ele parecia estar pretendendo uma modalidade passiva...
    - Você trancou a porta? – ainda se lembra de perguntar, enquanto se acomoda bem no meio da cama, seguindo as orientações de Antonio.
    - Claro, fica tranqüila... Agora fecha os olhos e me dá o seu braço direito...
    Antonio tinha deixado as algemas guardadas na gaveta de sua mesa de cabeceira. Eram perfeitas para prender no gradeado de ferro do espaldar da cama do casal. Começa prendendo uma delas na cama e depois pega o braço de Vera e, rapidamente, fecha o outro lado da algema em torno do seu pulso. Ela abre os olhos, assustada:
    - Que é isso? Tá maluco? – tenta levantar-se na cama, mas ele é mais rápido e senta-se sobre ela, segurando o seu braço esquerdo.
    - Calma, meu amor, é só uma brincadeira... Você não está exausta? Então, só precisa ficar bem quietinha... - explica, com um sorriso malicioso.
    Ela poderia gritar, mordê-lo, chutá-lo... Enfim, reagir. Mas não reage. Um confronto seria pior. Diz pra ele parar, mas, sem muita convicção. Ele não leva a sério seus protestos. Ela também não. Está indignada, mas, excitada. Não tem escolha. Gosta disso.

 O CARRASCO 15



Na manhã seguinte, Vera acorda mais cedo do que de costume e sai, deixando o resto da casa dormindo. Precisa espairecer e tentar pôr os pensamentos em ordem. Na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, o comércio está abrindo. Na volta, pode aproveitar para comprar a mochila que Isabel lhe pediu. Sábado é dia de compras, de manicure e de almoço na casa de sua mãe. Mas, antes vai até a praia. Sentada no banco do calçadão, tenta aquecer-se sob o sol de inverno. Na areia, os barraqueiros ainda estão arrumando seus isopores. Dois rapazes, de sunga, passam correndo pela areia fofa. Alguns garotos jogam futebol. À direita, em frente ao hotel, uns poucos gringos ignoram o frio e relaxam nas cadeiras azuis, sob o olhar atento de um segurança, sentado na parte mais alta, perto da barraca de bebidas. De resto, a praia está quase vazia, pois o sol fraco não é páreo para o vento frio que vem do mar. Aliás, o mar também parece perigoso. A bandeira vermelha, fincada perto da arrebentação, adverte para a correnteza, mas o tamanho das ondas dispensa o aviso.

    O que estará acontecendo com seu marido? Depois de tantos anos de casamento, pensava que o conhecia, mas, de repente, ele mostrava atitudes completamente imprevisíveis e surpreendentes. A maior parte delas, péssimas. Não sabe precisar se a mudança começou com a gravidez de Luisa ou com o novo trabalho. Foi tudo ao mesmo tempo. Mas, até o jeito de Antonio se vestir estava diferente. Poderia ser o aumento salarial. Afinal, ele estava ganhando praticamente o dobro do que ganhava no antigo cargo, o que significava que, pela primeira vez na vida, seu salário era igual ao de Vera. O que talvez explicasse algumas roupas novas e até um pouco mais de segurança no jeito de vestir, mas não justificava a nova postura autoritária...
    Não concordava com os que achavam Antonio fraco e preguiçoso. Seu marido era apenas um pouco infantil e inconseqüente. Agora percebia que talvez estivesse enganada. As lembranças da véspera insistiam em invadir seus pensamentos. A palavra estupro se insinuava e ela a rejeitava, de imediato. Se lhe dera prazer, não podia ser estupro. Ou podia? Não, ela não oferecera resistência... Tudo não passou de um jogo, um faz-de-conta entre adultos. Se tivesse reagido de verdade, ele não a teria forçado. Claro! O pai de suas filhas era um bom homem. Um tanto reacionário e machista, porém bom. O problema não era a noite de ontem, mas a gravidez de Luisa.
    Chega em casa, três horas depois, mais tranqüila, de unhas feitas e trazendo a mochila de Isabel. Encontra um bilhete de Antonio na bancada da cozinha, informando que saiu com Luisa e que não iriam almoçar com ela na casa de sua mãe. Lê o bilhete por uma segunda vez, para ver se, da primeira, lhe escapara alguma coisa. Mas, não. O marido não dissera aonde tinham ido e nem a que horas voltariam. Bem, poderia telefonar... Melhor, não. Não queria parecer controladora. Almoçaria com Isabel, na casa de sua mãe, e, mais cedo ou mais tarde, teria notícias de Antonio e Luisa. Até seria melhor assim. Não contara a "novidade" para D. Cristina; tinha esperanças de que Luisa mudasse de idéia e que não fosse necessário. Sozinha com Isabel, ficaria mais fácil evitar o assunto. Joga fora o bilhete e vai chamar a filha no quarto, levando a mochila nova.




CAPÍTULO 16


        Ao voltar do almoço com Isabel, Vera encontra Antonio e Luisa na sala, em meio a um monte de sacolas e embrulhos.

        - Mãe, que bom que você chegou! Olha as coisas lindas que a gente comprou pro bebê! – exclama Luisa, mostrando um macacãozinho amarelo.

        - Ai, que fofo! – grita Isabel, praticamente empurrando a mãe e atirando-se no sofá para ver as compras da irmã.

        Antonio pega uma sacola enorme e chama a esposa, que ainda está atônita, parada na entrada da sala:

        - Vera, pra você não achar que nós só compramos futilidades, tem aqui uns pacotes de fraldas...

        - Fraldas, Antonio??!! – interrompeu Vera, indignada, sem saber o que dizer. Estava tudo errado! Luisa não devia ter o bebê. E, se fosse para tê-lo, não deveria sair sozinha com o pai para comprar suas primeiras roupinhas (nem muito menos fraldas!). Esse era o papel da avó! Mas, é claro que não a chamaram porque sabem que ela é contra... Aliás, se tivesse sido convidada, provavelmente teria recusado. Então, ficava difícil culpá-los... Não, não ficava nada difícil, a culpa era mesmo de Antonio. Ele estava manipulando Luisa e esse passeio de compras era parte disso. Mas, não podia passar recibo, isso só a afastaria mais da filha e sepultaria de vez suas chances de reverter a situação.

        - É, Vera, fraldas! É bom ir comprando aos poucos, porque é uma despesa e tanto... – responde Antonio, rindo, como se fosse o mais inocente e bem-intencionado dos homens.

        “Quem não te conhece que te compre”, pensa, forçando um sorriso amarelo e concordando com o marido:

        - É mesmo, só não sei se temos espaço para um estoque grande - e, voltando-se para Luisa, desconversa – Deixa eu ver esse jeans... Que coisinha mais bonitinha...

        Fica mais alguns minutos com as meninas, esforçando-se para não deixar transparecer o quão contrariada está. O genuíno entusiasmo de Isabel, soltando gritinhos a cada novo pacote aberto, facilita a tarefa. Aproveita o toque do telefone para deixar a sala. No quarto, a amiga lhe pergunta, ao telefone:

        - E aí, como estão as coisas?

        - Nem sei – responde, sentando-se na cama – Não reconheço mais meu marido e minha filha está praticamente me ignorando... Estão lá na sala, agora, vendo as roupinhas que compraram para o bebê... – choraminga.

        - Ah, Vera... Não fica assim... Você não tem como impedir... Então, talvez seja o caso de tentar curtir com eles...

        - Eu sei, eu sei, você tem razão. Mas ainda não perdi totalmente as esperanças... Ainda dá tempo pra Luisa mudar de idéia...





        Mas a esperança, embora seja a última a morrer, não faz parar o tempo. Nas semanas seguintes, Vera mergulha no trabalho, enquanto Antonio e Luisa continuam dedicados ao bebê. Até conseguem arrastar Marquinhos para o primeiro ultrassom. “Foi tão emocionante, mãe, ouvir o coraçãozinho dele batendo”. As palavras de Luisa deixam Vera arrasada. Que raio de mãe era ela, que não acompanhava a filha adolescente num momento desses? Mas a verdade é que sequer tinha sido convidada... “Até o Marquinhos se emocionou, não foi, pai?”.

        Dois dias depois, Vera chega do trabalho e encontra a filha aos prantos, estirada no sofá da sala.

        - O que houve?! – pergunta, alarmada.

        A menina chora e soluça tanto, que é difícil entender o que se passa:

        - O Marquinhos... O Marquinhos... – e chora.... e soluça...

        - O que tem ele? Vocês brigaram? – a pergunta é retórica, porque é óbvio que o casal, que já não estava bem, só podia ter rompido...

        Vera abraça a filha e tenta acalmá-la para ver se extrai a história toda. Após alguns minutos e um copo d’água, Luisa finalmente consegue esclarecer:

        - O Marquinhos vai morar em Nova Iorque com os pais... Viajam no final do mês... – e se debulha em lágrimas novamente.

O CARRASCO 17 


Perfeito!, pensa Antonio, enquanto finge consternação com o sofrimento da filha. Não quer parecer insensível. Mas, tem certeza de que, no final das contas, a mudança da família de Marquinhos será melhor para todos. Procura animar Luisa:
       - Minha filha, você lembra que amanhã fica pronto o resultado do exame de sangue que diz o sexo do bebê? À tarde, quando eu voltar do trabalho, podemos passar no laboratório pra buscar e ir direto ao shopping comprar mais umas roupinhas... O que você acha? – pergunta, acariciando a cabeça da menina.
       Por alguns instantes, chega a arrepender-se da abordagem. Luisa soluça com mais intensidade. Um pouco depois, no entanto, parece acalmar-se e, fungando um pouco, responde:
       - Obrigada, pai... Se for menina, você me leva naquela loja onde a gente viu aqueles vestidinhos coloridos?
       - Claro, Luisa, te levo onde você quiser... E se for menino? – pergunta, sem disfarçar sua preferência.
       - Ah, pai, se for menino a gente compra aquele macacão que imita um terno, lembra? – responde, esboçando um sorriso.
       - Ótimo! Então está combinado. Agora vamos dormir porque a senhora precisa descansar pra esse bebê crescer forte.

       Antonio não cabe em si de felicidade com a confirmação de que o bebê é do sexo masculino. Para completar sua alegria, Luisa decide que vai dar-lhe o nome do pai: Antonio.
       - O apelido pode ser Toni, ou Tonico...- explica para a mãe.
       - Ou Toninho. – diz Antonio, enquanto observa o esforço que a mulher faz para disfarçar o ciúme. Uma pena que ela não consiga compartilhar de sua felicidade. Mas, na noite seguinte, irá surpreendê-la. Tirou o dia de folga e agendou a entrega da encomenda para o período da manhã. Assim, não haverá ninguém em casa e ele poderá preparar o quarto sem intromissões. Não quer que Vera veja do que se trata, logo de cara. Vai embrulhar tudo e explicar que é uma surpresa, para depois que as meninas dormirem. Fica excitado só de imaginar.
       - Hein, pai!!! Hellôô!! Tô falando com você...- Luisa o cutuca, impaciente.
       - Sim, filha, desculpe, me distraí... O que foi?
       - Você tinha algum apelido diferente, quando era pequeno?
       - Meus pais me chamavam de Tonho. Mas, eu não gostava... Preferia Toni... – recorda, melancólico. Lembra que o pai o chamara de Tonho até os últimos dias. Dizia que Toni era coisa da veado. Já a sua mãe, sempre respeitou sua vontade. Depois que lhe pediu, aos 14 anos, que parasse de chamá-lo de Tonho, ela pouquíssimas vezes deixou escapar o apelido de infância. Na frente de seus amigos, adotava o moderno Toni. Em particular, alternava Toninho e Antonio, conforme a gravidade do assunto. Mas, em geral, chamava-o  apenas de “meu filho”.
       - Ai, Tonho! Ninguém merece! Parece nome de jagunço de novela – comenta Luisa, rindo.
       - É verdade, minha filha, por isso mesmo que eu não gostava...
       - Não combinava com a vida de playboy que seu pai levava na juventude... – implica Vera, enquanto lava a louça, de costas para a filha e o marido, sentados à mesinha da cozinha.
       Antonio pensa em retrucar, mas escolhe fingir que não percebeu a cutucada e responder com bom humor:
       - Você bem que gostava de um playboy, não é, meu amor? – e dá-lhe um tapinha na bunda.
       - Antonio!!! – reage a mulher, com falsa indignação.
       As coisas já estão melhorando. Amanhã ela vai ter uma noite inesquecível. Antonio levanta-se, beija a mulher e a filha e declara:
       - Bom, eu vou me deitar, porque hoje o dia foi muito cheio de emoções e estou esgotado... Boa noite!


O CARRASCO 18

   Ainda bem que você pôde me receber, assim, de uma hora pra outra. Eu devia ter te procurado antes, logo que essa loucura toda começou... Mas demorei pra acreditar que Luisa ia mesmo ter esse filho. E também tentei ignorar as mudanças de Antonio. Agora estou com muito medo. Há dois anos atrás, quando eu larguei a terapia, estava tudo tranqüilo na minha vida. As meninas iam bem, o casamento tinha melhorado com aquela sacudida, o meu trabalho estava sendo reconhecido e bem remunerado. Agora, parece que está tudo de pernas pro ar. Luisa embarcou nessa loucura de ter um filho. Imagina que eu vou ser avó, aos 42 anos de idade... Mas, o pior de tudo, que, de certa forma, acho que é também a razão disso tudo, é a mudança de comportamento do meu marido. Não o reconheço mais. E não me reconheço tampouco. Nunca imaginei que aceitaria as coisas que venho aceitando. E agora não falo só da gravidez de Luisa e da forma como ele manipulou a menina a desistir de um aborto... O que está me assustando é o comportamento sexual de Antonio. E o meu. Ele sempre foi carinhoso, atencioso. Tomava a iniciativa, sabia me agradar e tudo mais. Mas, não era agressivo, nem insistente. De repente, na mesma época em que começou essa confusão toda, ele mudou. Não sei se tem a ver com o novo trabalho. É, porque ele mudou de trabalho. Continua sendo funcionário do Estado, mas agora tem um cargo secreto, em que trabalha apenas meio expediente e ganha o dobro do que ganhava antes. Talvez seja isso. Acho que antes ele se sentia um pouco diminuído porque ganhava menos que eu. Agora, ganha mais e ainda tem esse mistério todo. Que eu não gosto nada, nada... Mas o que eu posso fazer? Enfim, foi depois disso que ele começou a ficar mais agressivo. Mudou a pegada. No começo, até achei excitante. Mas, ontem, fiquei assustada. Cheguei tarde do trabalho e as meninas já estavam deitadas. Ele me chamou até o nosso quarto, onde havia um embrulho enorme, do tamanho de um móvel. Disse para eu ir dar boa noite para as crianças e depois voltar, que ele ia me mostrar a surpresa que tinha comprado para nós. Quando voltei, estava lá uma cadeira horrorosa, parecia uma cadeira ginecológica antiga, sei lá... Ele fechou a porta e, com o novo tom que agora usa na cama, me falou pra tirar a roupa e sentar na cadeira. Eu obedeci. Tentei fazer graça, levar na brincadeira, mas ele parece incorporar outra pessoa e acabo emudecendo. É muito estranho, fico com receio de um homem que conheço há mais de 15 anos. Só que não é mais o mesmo. Se fosse o antigo, eu riria e diria que prefiro a cama. Mas, do jeito que ele fala, me dá medo, me excita, e acabo fazendo o que ele manda. Acho que tem um lado meu que realmente gosta desse novo Antonio dominador. Posso relaxar e aproveitar, sem culpa, qualquer perversão que ele invente. Mas, no dia seguinte, me sinto muito mal. Acho que ele está doente e que eu estou pirando... Ele me amarrou, mais uma vez... Fico com vergonha de entrar em detalhes. Tenho vergonha de olhar pra ele, de manhã. Ele age como se não tivesse acontecido nada demais. Apenas uma noite "caliente". (...) Eu sei, eu sei que, entre quatro paredes, tudo é permitido, desde que os dois queiram. O problema é que eu acho que não quero e, no entanto, não consigo recusar.


O CARRASCO 19


Luisa entrou em trabalho de parto numa sexta-feira à tarde. Não dava para negar que, embora aquela criança estivesse vindo ao mundo cerca de uma década antes do que seria recomendável, ao menos havia escolhido bem o dia da semana e o horário, de forma a causar o mínimo de transtornos à rotina da família. Antonio estava em casa com as filhas e, após cronometrar por algumas horas a evolução das contrações, decidiu que era hora de ir para a maternidade. Avisou Vera, que estava no escritório, para que fosse ao seu encontro.


 
        Quando Vera chegou à maternidade, Luisa já estava sendo levada para a sala de parto. Não parou para pensar. Apenas assumiu seu posto ao lado da filha, que precisava de seu apoio. Antonio ficou esperando do lado de fora, pois "não tinha estômago para essas coisas". No fundo, ainda era o mesmo, pensou. Ela também não tinha estômago para aquilo, jamais imaginou que precisaria. Suas filhas nasceram de cesariana, porque o médico achava mais prático e menos sofrido, e ela ficou feliz em concordar. Agora via Luisa chorando, berrando e suando, agarrada à sua mão, e sentia o coração apertado de impotência e culpa.

 
        Quando, finalmente, o médico tirou o bebê, caiu em prantos. Sequer conseguiu responder quando o pediatra lhe perguntou se queria cortar o cordão umbilical. Claro que não! Ela não chorava em genuína manifestação de êxtase diante do milagre da vida. Sua vontade era enfiar aquela criança de volta no ventre da filha e deixá-la lá por alguns anos. Mas, não era hora para devaneios. Aquele bebê vermelho, quase roxo, pelo qual sentia um afeto melancólico, já chegava ao mundo carregando um fardo de culpa grande demais para qualquer adulto. Faria de tudo para aliviá-lo e trazer para si toda aquela culpa, que, no fundo, era somente dela. Olhou para a filha, que agora ria, um riso um pouco nervoso, enquanto a enfermeira se aproximava com o bebê enrolado em uma manta.

 
        - Pode segurar, mamãe, é um menino lindo e forte - disse a enfermeira, docemente, para Luísa.

 
        Sem fazer qualquer menção de pegar o embrulho que a enfermeira lhe oferecia, Luisa lançou um olhar suplicante em direção à mãe.

 
        - Acho que não tenho forças - disse, constrangida, para a enfermeira - Leva ele pra vovó.

 
        Vera acudiu prontamente, quase correndo para pegar o bebê dos braços da enfermeira, que sequer tentava disfarçar a expressão de reprovação. Precisava evitar que o bebê sentisse a rejeição que emanava de Luísa. Ele não merecia sofrer, sua filha tampouco. Tomou o menino das mãos assépticas da enfermeira e tentou transmitir-lhe todo o calor maternal que tinha desenvolvido ao longo das décadas. A bem da verdade, a criaturinha não parecia sentir muita diferença entre a sustentação funcional da enfermeira e o colo caloroso da avó. Por algum tempo, permaneceu quieta, alienada, como se ainda estivesse no útero materno.

 
        Enquanto isso, o médico explicava a Luísa que ela deveria amamentá-lo o quanto antes. Que seria bom para o bebê e também para ela, pois as contrações provocadas pela sucção da criança, ajudariam na sua recuperação. Diante da resistência de Luísa, que chegou a chorar, dizendo que estava cansada, que não tinha forças para segurar o filho, Toninho foi mandado para o berçário e Luisa para o quarto, sempre acompanhada da mãe.

 
        No caminho, encontraram Antonio, que, após ver o neto, que acabara de passar, era o retrato da própria felicidade:

 
        - Parabéns, filhinha, parabéns! – emocionava-se, parecendo não perceber que a filha, deitada na maca, tinha o olhar inerte, perdido sob um rio de lágrimas que escorriam serena e incessantemente pelo seu rosto.

 
        Enquanto a enfermeira e Vera ajudavam Luisa a acomodar-se na cama, Antônio começou a telefonar para amigos e parentes. Repetia as mesmas informações a cada nova ligação, com o mesmo entusiasmo. A cada interlocutor, renovava-se seu orgulho. É um menino! Três quilos! Parto normal! Antonio, igual ao avô! Luísa está ótima!

 
        Sentada ao lado da filha, do outro lado do quarto, Vera sentia gratidão pela alegaria do marido, por mais despropositada que fosse. Afinal, se alguém estava tão radiante com o nascimento daquela criança, as coisas não deviam ser tão sombrias quanto lhe pareciam. A própria Luísa parecia estar se animando com o falatório do pai. Quando Antônio terminou os telefonemas, até concordou em mandar trazer Toninho e tentar amamentá-lo.

 
        Antes do bebê, todavia, chegaram Isabel e D. Cristina, mãe de Vera. A menina trazia flores e bombons para a irmã, obviamente por instrução da avó, que tentava agir como se achasse normal uma adolescente ter um filho.

 
        - Cadê o meu sobrinho? - perguntou Isabel, enquanto abria a caixa de bombons que tinha trazido para Luisa e, antes mesmo de oferecer a qualquer dos presentes, enfiava o primeiro na boca.

 
        - Minha filha, pelo menos oferece pros outros... - repreendeu Vera, por puro hábito, já que a educação de Isabel, naquele momento, era a última de suas preocupações, emendando – A enfermeira já foi buscar o Toninho.

 
        - É uma bela homenagem ao seu pai, dar o nome dele ao seu filho - afirmou D. Cristina para Luísa e, virando-se para Antônio, concluiu, com um quase imperceptível toque de ironia - Você deve estar muito orgulhoso!

 
        Sem perceber qualquer maldade no comentário da sogra, Antonio respondeu, entusiasmado - É, Cristina, realmente é uma honra, ainda mais em se tratando de um meninão forte e saudável como o meu neto, você precisa vê-lo... Ó, falando nele, olha quem vem aí...

 
        A enfermeira entrou carregando Toninho e foi imediatamente cercada por D.Cristina, Luísa e Antônio. A bisavó se aprumou, na clara intenção de acolher o bebê no seu colo, mas Antônio foi mais rápido. Pegou o neto um tanto desajeitadamente, o que fez com que se pusesse a chorar.

 
        - Ele está com fome – explicou, como se já soubesse adivinhar as necessidades do neto - Agora ele vai mamar. – afirmou, possuído daquela recente autoridade, à qual Vera ainda não se acostumara.

 
        Levou o bebê até a cama de Luisa que, dessa vez, não teve escapatória. Tomou Toninho nos braços e, meio sem jeito, tentou levá-lo ao peito. Vera se aproximou para ajudar. A criança não parava de chorar.







O CARRASCO 20 

Aquele choro a perseguiria por muito tempo, penetrando em seus ouvidos como uma acusação. Luísa não conseguiu amamentar o filho: nem no dia do nascimento, nem nunca. E ele chorava, chorava e chorava, de forma tão persistente, que o único jeito de evitar aquele som enlouquecedor, era afastar-se dele. Foi o que fez.


        Ninguém a compreendia. Ninguém sabia o susto que tinha passado ao deparar-se pela primeira vez com aquele bebê. Naturalmente, pensavam que devia estar preparada. Qual seria o sentido de uma gestação de nove meses, se não preparar a mãe para a chegada do neném? Luísa não tinha a menor idéia, só sabia que, para ela, nove meses não tinham sido suficientes.

        Durante a gravidez, até que as coisas foram bem. A situação tinha um lado constrangedor, sentia que as pessoas a olhavam como se fosse uma espécie de aberração. Mas, ao mesmo tempo, ganhara um certo status de adulta. Seus amigos, embora a maior parte achasse uma loucura ela ter um filho, tratavam-na com respeito e consideração especiais. As meninas perguntavam sobre todos os detalhes da gravidez, em uma mistura de admiração, inveja e pena. Era gostoso desfilar a barriga imensa pelas ruas, aceitar os assentos que lhe eram oferecidos por rapazes gentis nos ônibus lotados, ser mimada pelo pai, que lhe trazia sempre uma guloseima, na volta do trabalho.

      No centro de tantas atenções, até esquecia a estranha sensação de ter um ser independente crescendo, à sua revelia, dentro de seu corpo. Até mesmo na hora dos exames, nada parecia muito real. A ultrassonografia de última geração mostrava imagens do embrião que revelavam tratar-se de um menino, para alegria de seu pai. Mas, apesar das imagens bastante nítidas de seu filho, no fundo, ela não acreditava muito que aquele animalzinho que aparecia na tela do computador fosse realmente uma criança crescendo em seu ventre. Nem mesmo as roupinhas que comprava ou ganhava da família e dos amigos tornavam mais concreta a iminente chegada de seu filho.

        O nascimento de Toninho foi um choque. Após horas de dor excruciante, aquele bebê vermelho, com cara de joelho, foi puxado de dentro dela, comprovando que tinha estado lá o tempo todo. E, ainda por cima, chorava, enquanto todos a olhavam, como se fosse ela a responsável pelo seu choro, pelo seu sofrimento, e não o contrário. A enfermeira, o médico, sua família, todos queriam que amamentasse o bebê. Sequer consideravam a hipótese de que ela não quisesse fazê-lo. E não queria. Estava cansada e assustada.

        De uma hora para a outra, parecia que ninguém se preocupava mais com o seu bem estar, que vinha sendo uma prioridade absoluta nos últimos meses. Agora só se importavam com o bebê. Ela era apenas a mãe de Toninho e, como tal, deveria sacrificar-se por ele. A pressão foi tanta, que acabou se resignando e tentou amamentá-lo. Procurou esquecer a vergonha de expor o seio nu diante daquela platéia ávida, encarando o ato como uma demonstração de que era uma mulher adulta e completa. Mas, quando aquelas mãozinhas minúsculas tocaram no seu peito e aquela boquinha sugou o bico intumescido com uma força tirada sabe-se lá de onde, sentiu dor, sentiu vergonha, sentiu até nojo. Enquanto isso, todos admiravam a cena, encantados com a voracidade de Toninho. Ela sofrendo, e a platéia comentando que ela devia ter bastante leite, o que seria ótimo para o bebê. Não queria participar daquilo. Olhou pela janela. O dia estava lindo. Há tempos não via um céu tão azul. Começou a chorar.