domingo, 24 de abril de 2011

O CARRASCO - 2


Foi assim que, no dia 3 de abril de 2008, o senhor Antônio Pereira dos Santos, 38 anos, casado, pai de duas filhas, funcionário burocrático de uma repartição do Estado, recebeu a convocação para servir à pátria no dia 10 do mesmo mês.

O envelope chegou junto com a correspondência de sua casa. Apressado que estava, Antônio levou-o junto com extratos bancários, propagandas e contas para o trabalho, onde, depois de assinar o ponto e pendurar o paletó na cadeira, teria tempo de sobra para apreciar o seu conteúdo.


Quando, enfim, se acomodou diante de sua mesa, foi logo abrindo o envelope timbrado do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Quem sabe não seria uma boa notícia: um aumento, um prêmio, uma promoção... Ao ler a convocação, empalideceu, começou a tremer e a suar frio, tamanha a descarga de adrenalina que a notícia lhe provocou. Não podia ser. Por que ele? Até hoje ninguém de suas relações tinha sido chamado a servir como carrasco: nenhum de seus colegas de repartição, amigo ou parente. Já ouvira falar de gente que tinha sido convocada, mas pessoas distantes, tipo primo do cunhado do amigo. É verdade que ele tinha votado a favor da pena de morte... Fez até mais que isso. Ele, que sempre fora um cidadão apolítico, pela primeira vez engajou-se em uma campanha, até boca-de-urna ele fez. Mas isso não queria dizer que estivesse disposto a participar pessoalmente da execução dos criminosos. Não, sua idéia não era essa.


Imerso nesses pensamentos, custou a perceber a presença de Lúcio:


- Antônio, o que houve? Você tá passando mal?


Permaneceu com os olhos esbugalhados, fixos no papel que tinha nas mãos trêmulas. O suor lhe escorria pela face.


- Alguma notícia? – perguntou o colega, esticando o pescoço para tentar ver o que estava escrito na carta.


- Ahn, o quê? - ergueu os olhos vagamente na direção de Lúcio.


- O que foi que aconteceu? Você tá branco como uma parede – insistiu o amigo.


- É...Tô, né? Olha isso - Antônio estendeu a carta com uma das mãos enquanto com a outra procurava afrouxar o nó da gravata.


Lúcio pegou o papel e tirou os óculos para enxergar melhor de perto:


- Deixa eu ver...


Após rápida leitura, dobrou cuidadosamente a carta e devolveu-a a Antônio:


- É, isso pode acontecer com qualquer um... Coragem, homem! Afinal, pra acabar com esses filhos-da-puta,alguém tem que sujar as mãos e, mais dia, menos dia, todo homem de bem vai ser chamado a colaborar.

- Eu sei, eu sei... Mas falar é muito fácil, você só está nessa calma toda porque não está na minha pele. – respondeu Antônio, aflito.

Não era só a questão de matar que o preocupava... O que diria às pessoas? Deveria revelar a novidade à sua mulher, ferrenha opositora da pena de morte? Como explicaria a situação às suas filhas? E o que pensariam seus amigos? Enfim, todo mundo. Mesmo os que estavam de acordo com a execução de criminosos não deixariam de vê-lo com outros olhos, como uma espécie de assassino.

- Escuta, Lúcio, não comenta isso com ninguém não, tá? Você entende, eu não quero chocar a minha família. Pode deixar, que eu não vou fugir da raia... Mas é melhor que isso fique só entre nós, ok.?

- Claro, rapaz, não se preocupe, eu compreendo perfeitamente a sua situação. Você sabe que não é obrigado a tomar parte nisso, né? Há meios para se safar...- sugeriu o colega, solidário.


- Não, De jeito nenhum, não sou um covarde. Não vou inventar problemas de saúde nem, muito menos, me declarar contrário à pena de morte. Seria muita humilhação. O que ia ter de neguinho me sacaneando não tá no gibi... A começar pela minha própria mulher! Não, eu vou até o fim. É o mais coerente, você não concorda?


- Plenamente, plenamente. Eu agiria exatamente como você. Não que me agrade a idéia de matar uma pessoa, mas, lá na hora, eu pensaria no desgraçado que envenenou o meu dobermann e mandava ver.


Lúcio tinha razão. Ele ia encarar aquela parada. Só não deixaria ninguém de sua família ficar sabendo.


Foto: Beto Valente

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Polícia na escola?

Escrevi este post em março do ano passado e acabei não publicando... Segue agora:

"Ontem fui à reunião de pais da escola de meu filho de 11 anos. Como estava marcada para as 7:30 hs da manhã, naturalmente cheguei atrasada e perdi a primeira parte que, pelo que soube, foi dedicada a esclarecer formas de avaliação, cálculo de médias e outras questões palpitantes do dia a dia escolar. Já a segunda parte, apresentada pela coordenadora do segmento, visava preparar os pais para as grandes mudanças que devem ocorrer com as crianças este ano, em que os alunos do sétimo ano (antiga sexta série) completam 12 ou 13 anos e entram na adolescência.

A discussão acabou girando em torno dos riscos do uso indiscriminado da internet que, além de atrapalhar os estudos, tem gerado novidades horripilantes como o "cyberbullying", prática que envolve denegrir a imagem de um colega através de sites de relacionamento ou similares. Relatados alguns casos - que iam de inocente publicação de fotografia de professor, tirada sem autorização com o celular durante a aula, até injúrias e difamação pesadas, que geraram processo de indenização - sugeri que a escola convidasse um especialista da polícia (tipo um perito em informática) para fazer uma palestra para os meninos, a fim de explicar os perigos de divulgação de informações pessoais e as consequências de ofensas veiculadas pela internet.

Alguns pais pareceram favoráveis à sugestão, mas a coordenadora se mostrou completamente avessa à idéia de levar a polícia para a escola. Na hora, não entendi bem e não tive oportunidade de pedir que ela me esclarecesse o motivo pelo qual achava inconveniente levar um policial para fazer uma palestra na escola. Mas depois fiquei matutando... Será porque ela acha que a polícia seria muito intimidadora para os meninos? Mas, se meninos de 12 anos já são capazes de publicar contéudo ofensivo à honra de colegas na internet, será que não precisam justamente de uma figura intimidadora para adverti-los? Será que polícia é só para pobre, e não para meninos de classe média-alta da Zona Sul? Será que não se pode confiar na polícia? Sei lá, achei muito estranho...

Quando criança, morava em Viena, na Áustria, e me lembro que, ainda na primeira série, um policial foi à escola para falar conosco sobre cuidados ao atravessar a rua e advertir-nos sobre os riscos de falar, aceitar balas, ou entrar no carro de estranhos. Esse contato com a polícia, além de servir para dar ênfase às recomendações que todos estavam cansados de ouvir de seus pais, serviu para humanizar o policial e tirar o medo natural que as crianças têm da autoridade. Pouco tempo depois, não hesitei em aceitar o auxílio da polícia quando pensei ter sido esquecida na porta da escola...

OK, aqui no Rio, eu não recomendaria a nenhuma criança entrar, sem mais nem menos, num carro de polícia para pegar uma carona pra casa... Mas talvez algum dia possa ser assim. E acho que a polícia também precisa ser prestigiada. Se um policial, além de ganhar um salário ridículo, ainda é tratado como um reles guardinha incompetente pelas pessoas que ele supostamente deve proteger, o que se pode esperar? Agora, se ele é prestigiado, ouvido e respeitado, não será mais fácil?"

domingo, 17 de abril de 2011

O CARRASCO - 1

O ano de 2007 deu lugar a uma ampla reforma do sistema penal brasileiro. Foi, finalmente, instituída a pena de morte, satisfazendo-se, assim, um velho anseio da sociedade, que, desde o fim do último milênio, vinha clamando por vingança. A Constituição de 1988 foi emendada a fim de permitir a deliberação sobre a pena de morte através de plebiscito. A própria emenda à Constituição só foi possível graças à nova interpretação que se deu ao seu artigo 60, segundo o qual não seria objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias fundamentais. De acordo com a nova interpretação doutrinária, no entanto, a pena de morte deixou de ser uma ameaça ao direito à vida para tornar-se um instrumento de defesa desse mesmo direito.



Realizado o plebiscito, que registrou o menor número de abstenções da nossa história, venceram os defensores da pena de morte, que chegaram a 73% do eleitorado. O legislador deparou-se, então, com um novo problema: Qual seria o método de execução da pena, e, além disso, quem seriam os carrascos? A cadeira elétrica foi o método escolhido, a exemplo da prática adotada por nossos irmãos norte-americanos, que, inclusive, nos exportaram gratuitamente a sua tecnologia. Chegaram até mesmo a doar-nos algumas cadeiras de modelo ultrapassado para os seus padrões, mas, em perfeito estado de conservação.



Foi na escolha dos carrascos que o legislador brasileiro deu asas à sua criatividade e demonstrou o seu estilo inovador. Levando em consideração que a esmagadora maioria da população votou a favor da adoção da pena capital, decidiu-se por uma solução econômica e democrática. Os carrascos seriam periodicamente convocados dentre os eleitores de 21 a 60 anos de idade, mais ou menos da mesma forma que eram convocados os mesários das eleições. O cidadão convocado seria dispensado do seu trabalho no dia em que fosse executar os praticantes de crimes hediondos. As execuções, no máximo cinco por carrasco, dar-se-iam na parte da manhã, após o que o cidadão receberia um lanchinho e seria dispensado pelo resto do dia.


Foto: Beto Valente

UHÚÚ - TRÊS SEGUIDORES

Tendo atingido a espetacular marca de três seguidores (no fundo, acho que são 4, porque, se vocês repararem bem, verão que na foto de um deles tem dois caras...), orgulhosamente anuncio que, além de esporádicas publicações sobre assuntos diversos, "estarei disponibilizando" ao meu distinto público, de forma fragmentada, um escrito de categoria ainda não definida (nasceu conto, teve ambições de romance e delirou que era um filme...), inacabado (foi iniciado há cerca de 20 anos, acrescido de algumas páginas há 13 e reencontrado há 2) e intitulado "O CARRASCO". A história começa num futuro longínquo, que já foi, sem nunca ter sido. Em 1990 e poucos escolhi o ano de 2008, imaginando que nesta data teria a idade provecta de 38 anos... Há! Enfim, só estou explicando para que meus três leitores se situem melhor e compreendam porque não há telefones celulares na história...

Boa leitura e uma ótima semana para todos!

sábado, 16 de abril de 2011

EU NÃO QUERO QUE VOCÊ TENHA UMA ARMA

Eu não quero ter uma arma e tampouco quero que você tenha. Não quero que meu vizinho tenha, nem meu porteiro, nem o motorista de táxi, nem o passageiro do ônibus. Não quero que, durante um assalto no meu prédio, o vizinho tente reagir e acabe levando um tiro. Também não gostaria que o porteiro reagisse e matasse um bandido bem na frente do meu filho, enquanto outro bandido toma a vizinha como refém. Não quero que o amiguinho do meu filho pegue a arma do pai e leve para a escola para mostrar aos colegas (que duvidaram que ela existisse ou que estivesse ao seu alcance) e acabe disparando um tiro acidental. Não quero que o motorista de táxi, num dia de calor e de engarrafamento, salte do carro para ameaçar com sua arma o filhinho de papai que lhe deu uma fechada, seguida de um dedo do meio. Até seria educativo para o garoto, mas eu posso estar no carro ao lado e me assustar. Não quero que aquele seriíssimo pai de família, acometido por súbita e passageira estupidez estimulada por litros de álcool ingeridos enquanto assiste, sozinho, ao jogo do seu time do coração, resolva fazer um disparo comemorativo, para o alto, pela janela de seu apartamento, e acabe atingindo o ombro do meu marido, que assiste ao jogo, no sofá da nossa sala, do outro lado da rua. Não quero que um bandido assalte o seu apartamento, na sua ausência (eu sei que, se você estivesse lá, renderia com facilidade o meliante e o entregaria às autoridades...), e roube a sua arma. É que depois ele pode vendê-la a outro ladrão, que pode ser justamente aquele que vai me assaltar, quando parar o meu carro no sinal vermelho. Também não quero que o governo seja obrigado a gastar parte do dinheiro dos impostos que eu pago para tratar de vítimas de armas de fogo que poderiam não estar em circulação...Talvez você ache que eu estou querendo cercear a sua liberdade... Pode até ser... Mas não é você quem quer me impedir, ou a qualquer outra mulher que engravide acidentalmente, de realizar um aborto com segurança e sem infringir a lei? Ainda não entendi bem como você seria afetado se eu fizesse um aborto... Ah, é que você é muito sensível e ama todos os seres humanos, inclusive aqueles ainda não nascidos, e luta por seus direitos. Inclusive o direito de uma criança nascer num mundo hostil, de uma mãe que não a quer e não tem condições de criá-la e, possivelmente, vai abandoná-la... Aí, quem sabe, ela se torna um marginal, tenta te assaltar e você lhe mete um tiro na testa. .