segunda-feira, 29 de abril de 2013

VIAGEM A CANCÚN

texto de Eduardo Haak - para ser lido após

 




Um dia antes de morrer meu pai me contou tudo.


Soube, entre outras coisas, que Zbigniew, que também imigrou para o Brasil e que agora se chama José Constantino, faria uma excursão para Cancún.


Eu supunha ser capaz de reconhecê-lo, mesmo o tendo visto só uma vez, de relance, numa tenebrosa noite de agosto de 1982.


Embarquei no avião e fui dormindo até a escala no Panamá. De lá até o final da viagem não preguei os olhos.


Discretamente me pus a observar as pessoas na área de recolhimento de bagagem.


Homens na faixa de quarenta anos, talvez barnabés federias, mulheres com pinta de bibliotecárias solteironas. 


Vi que um sujeito, talvez o mais velho do grupo, me observava e desviou o olhar rapidamente assim que o notei.


Um ou dois casais em lua-de-mel, caveiras e cactos, mariachis tocando cornetas e berrando arriba.


Odeio viajar em excursão.

 

 
Chichén Itzá é uma cidade arqueológica que foi o centro político e econômico da civilização maia, leio no folheto que nos foi entregue antes de entrarmos no ônibus. 


Estamos indo visitar a pirâmide de Kukulkán.


Ao meu lado está a mulher com quem tomei o café da manhã, uma carioca bonita e simpática, com jeito de apresentadora de telejornal.


Conversamos trivialidades. Se ela perguntar, direi que tenho uma fazenda no Mato Grosso do Sul e que ganhei essa viagem num bingo beneficente. 


Será um modo de testar sua esperteza.


O sujeito mais velho grupo está mesmo cismado comigo. Conheço todos os esgares da dissimulação, cresci vendo o general Jaruzelski na TV e ouvindo meus professores enaltecerem o socialismo enquanto minha mãe passava horas em filas nos mercados de Varsóvia. 


Uma vez escrevi num caderno Jaruzelski imbecil, minha mãe me deu um tapa no rosto.

 

 
Resolvo ficar com Rebeca, a carioca. Parecer um fazendeiro bobalhão em busca de uma aventura sexual será bom para arrefecer um pouco as suspeitas do tal sujeito mais velho do grupo.


Hoje demos de cara um com o outro no restaurante, ele claramente demonstrou ter ficado em pânico. 


Ainda não pude conferir seu nome, nem o ouvi dizer qualquer coisa para checar seu sotaque.


Estou pensando no que vou fazer se ele for mesmo o Zbigniew.


Irei matá-lo?


Rebeca e eu bebemos várias tequilas e subimos para o quarto.



Ela se joga na cama de bruços, levanta o vestido e diz, vem, deita em cima de mim.


Coloco camisinha e chupo demoradamente sua boceta.


O corpo de Rebeca, à medida que sua temperatura aumenta, exala um sutil cheiro de cloro, de piscina, de madeira recém-podada. 


Os cheiros femininos todos. Como são bons.

 

 
A TV noticia um terremoto de sete ponto seis graus cujo epicentro foi no Oceano Pacífico, a apenas cinquenta quilômetros da costa de Cancún, então é dado um alerta de tsunami e todos embarcamos num ônibus e vemos quando as ondas gigantes se aproximam e vão arrebentando tudo, prédios, resorts, quiosques, embarcações, então percebo que Cancún na verdade é Curitiba e vejo que o cemitério onde meu pai está enterrado também foi atingido pelos tremores e a TV informa que há mortos insepultos e túmulos destruídos e que o trabalho de recuperação deverá durar meses, a cidade está sem luz, água, telefone, transporte público e o governo decretou toque de recolher para evitar saques, penso que posso passar a noite no cemitério, mas tenho medo de pensarem que estou morto e de acabar sendo enterrado vivo. 


Acordo sobressaltado com o telefone, o concierge diz que há uma entrega para mim na portaria. Desço e ele me dá um envelope.


Dentro, um bilhete, "1402. 17h30".


Volto a meu apartamento e pego uma faca de trinchar que roubei da cozinha. 


Não sei exatamente ao encontro do que estou indo, preciso me prevenir.


Tomo o elevador e bato no quarto 1402. A porta é aberta.


O que vejo me faz recuar um passo, numa reação instintiva de horror.


Que bom que você veio, o velho diz. Esperei por esse momento desde a primeira vez em que te vi, lá no aeroporto. 


Voz.


Sua voz não tem qualquer sotaque. 


Entra, ele diz.


Tenho um leve impulso de me movimentar, mas me detenho.


Entra, vamos, ele insiste.


Poloneses adultos que aprendem outro idioma, especialmente um idioma neolatino, como o português, jamais perdem o sotaque.


Desculpa, mas você está enganado, respondo, sentindo o horror ceder espaço à comiseração. 


Mas... você me olhou tantas vezes... nesses dias todos...


A voz do velho não tem sotaque, mas tem uma impostação inequivocamente gay. Além disso, ele está maquiado e travestido.


Supus que você fosse outra pessoa, digo. Lamento.

 

 
Zbigniew. 


Meu pai pediu que eu me vingasse de Zbigniew da forma que eu achasse mais justa.


Onde estará ele?

 

 
Varsóvia, 1982.


Zbigniew é um esbirro do Sluzhba Bezpiecienstwa, o serviço secreto polonês. Meu pai teve um caso com sua mulher, Malgorzata. 


Meu pai é preso, acusado de qualquer coisa. Minha mãe é levada junto. 


Zbigniew, numa sala de interrogatório, sodomiza minha mãe com o cabo de uma faca e obriga meu pai a ver tudo.


Eu tenho onze anos, só irei saber disso tudo daqui a três décadas, mas viverei inconscientemente todas as consequências dessa violação.

 

 
Acho que já fui destruído o bastante por essas histórias.

Também acho não tem como Zbigniew não ter como carrasco sua própria monstruosidade, onde quer que ele esteja.

 

 
Ontem o pessoal foi conhecer o templo de Chac Mool, mas Rebeca e eu não conseguimos sair da cama, estávamos exaustos, tínhamos dormido depois de cinco da manhã.


Temos fodido todos os dias. Acho que estou ficando viciado em fodê-la. 


Rebeca me deu um chapéu de presente, ela disse que viu numa loja e achou a minha cara.


Já devem ter dito pra você que você é a cara do Indiana Jones, não?, ela diz. 


Nunca, respondo mentindo.


Rebeca ajusta o chapéu em minha cabeça, mexe nas abas e diz, posso te pedir uma coisa?


Depende.


Posso ou não posso?


Pode.


Você usaria ele hoje?


Usaria como?


Usaria. Durante. Só um pouquinho, vai.


A gente come uma mulher e sempre pensa depois, por que eu fui fazer essa cagada?, estava aqui sossegado, agora sabe-se lá com o que eu vou ter de lidar, toda mulher é maluca, sim, a gente pensa exatamente nisso, mesmo quando a mulher é muito gostosa, como é o caso da Rebeca, e mesmo quando a gente está gostando muito da coisa, como é o meu caso.

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